Jornal Estado de Minas

SAÚDE PARA PESSOAS TRANS

Homens trans e assistência ginecológica: medo, dor e constrangimento

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Há uns 15 dias, mais ou menos, fui pela primeira vez ao ginecologista depois do início da minha transição. Foi uma consulta por meio do meu plano de saúde. Pra quem não sabe, sou um homem negro retinto, trans e neurodiverso (no meu caso, dislexia e TDHA). Isso mesmo, homens trans também precisam ir ao ginecologista. E nessa semana tive que voltar lá, mas antes tive que me preparar psicologicamente e tirar força e coragem do “suvaco”. “Mas por que, Arthur?”

Vamos lá: na primeira vez que cheguei no endereço do consultório médico, de cara me deparei com o porteiro me olhando de cima a baixo, com cara de assustado e com frases do tipo: “Você quer vemos mesmo o doutor X? Você veio fazer uma entrega para ele, né?" 

E como já falei, nesta semana tive que voltar lá. Tanto a secretaria como o médico mais uma vez me trataram muito bem, de forma humanizada, mas mais uma vez, quando passei pelo porteiro do prédio, ele me olhou com uma cara de assustado. Dei bom dia, falei que tinha horário com o dr X e dei minha identidade. Vale ressaltar, que já fiz minha retificação de nome, ou seja, na minha identidade já tem meu nome, Arthur. Mas mesmo com a minha identidade nas mãos, o porteiro perguntou: “Qual é seu nome?”. Na mesma hora respondi, ‘é Arthur, está no documento!’. 





Imagina só, sempre que você precisa de atendimento à saúde acaba tendo que dar mil explicações, explicações de “porque você é assim”, tem que explicar várias vezes qual é a diferença de uma pessoa trans e uma pessoa cis, além disso, sempre tem que escutar frases passivo agressivas do tipo: “é, as coisas estão mudadas mesmo, no meu tempo não era assim, mas cada um faz o que quiser da vida, né”, como se ser trans fosse algo errado, ruim ou/e apenas uma escolha. Ou imagine se sempre que  você procurasse atendimento médico as pessoas que trabalham no lugar te olham assustadas, te encarando como se fosse um ser de outro mundo? Com certeza isso iria impactar na sua ansiedade, sua saúde mental, iria gerar medo e um sentimento de não pertencimento gigantesco. 

Talvez você esteja pensando: “Poxa Arthur, o porteiro, nem a secretária, nem mesmo o médico tem a obrigação de adivinhar que você é um cara trans”. Mas não estou pedindo adivinhação. Eu estou falando é de respeito na prática. Estou falando da importância da promoção ao acesso à saúde para todas as pessoas, da necessária naturalização da presença de corpos trans em hospitais, consultórios médicos, centros de saúde, clínicas, e por aí vai. 

Estou falando da falta de investimentos para promover sensibilização, conscientização e informação às pessoas que trabalham diretamente ou indiretamente com a rede privada de saúde e na saúde suplementar. Sabe o senhor que trabalha como porteiro no prédio? A ideia aqui não é transformar ele em vilão. Longe disso. Quero ressaltar que com certeza ele só teve essa atitude porque faltou informação e treinamento. Se ele tivesse passado por um programa de diversidade e inclusão, com certeza o porteiro teria outras formas mais adequadas de abordar pacientes trans. 





“Ah, Arthur, você está exagerando”. Infelizmente não estou. Já relatei aqui em um outro artigo que para evitar constrangimentos e discriminações uma vez pedi a recomendação de endocrinologistas que já atendiam pessoas trans. Recebi mais de três indicações de um mesmo médico. Então fiquei mais relaxado, sem tanto medo ou receio. Mas, assim que ele abriu a porta, já soltou uma enxurrada de “piadas” transfóbicas e homofóbicas. 
 
Em um determinado momento, já não aguentando, perguntei se ele realmente já tinha experiências de atender pessoas trans e disse que aquela atitude não era correta. Nossa conversa se prolongou e ele resgatou a memória da primeira vez que viu uma mulher trans. Ele estava de 5 para 6 anos. Segundo o médico, todas as pessoas adultas que estavam no mesmo ambiente deram risada e fizeram “piadas” em relação a mulher trans sem nenhum pudor. Depois de muito refletir, o médico percebeu que ele naturalizou essa situação absurda durante toda vida.  
 
Ou seja, mesmo chegando à vida adulta, mesmo tendo um poder econômico mais elevado, mesmo com acesso à educação e tendo uma profissão que tem como base o atendimento a diversas pessoas, este médico ainda reproduzia estereótipos e preconceitos contra a comunidade trans por mais de 50 anos. 

Infelizmente, algumas médicas e médicos chegam ao ponto de se recusarem a tocar o corpo de pessoas trans por nojo ou receio, ainda que isso seja feito de uma maneira “sutil”. Outros profissionais justificam a recusa em atender com o argumento de que nunca atenderam uma pessoa trans e, por isso, preferem não arriscar. 




 
Ou seja, estereótipos, preconceito e desinformação se manifestam na forma como esses profissionais atuam em relação à população trans.

Só para você ter ideia, em janeiro de 2020, participei da produção de um programa jornalístico que tinha como principal tema as vivências de pessoas trans. Uma das entrevistadas compartilhou que, durante uma consulta médica, ao explicar que era uma mulher trans, antes mesmo de explicar qual era o motivo que a levou até o consultório, o médico pediu uma triagem de exames para saber se ela tinha alguma infecção sexualmente transmissível. Infelizmente, ainda hoje, muitos profissionais subentendem e associam o meu corpo trans a IST's. 

Além disso, durante consultas médicas, alguns profissionais da saúde ainda se recusam a respeitar o nome e pronomes de pessoas trans. Aliás, muitas vezes nosso constrangimento já começa na recepção do consultório ou hospital, quando em alto e bom som anunciam nomes que não são os nossos. Situação que sempre vem acompanhada de risadas, “piadas” e olhares invasivos. 

E é sempre importante lembrar, ainda mais nesse Outubro Rosa de conscientização, prevenção e combate do câncer: não só mulheres cis podem ser acometidas por câncer de mama. Homens cis e pessoas transexuais e transgêneros também. Mas como a população trans pode procurar orientação, consultas, exames e tratamento se o sistema de saúde ainda insiste em ignorar nossa existência? 

Nós, pessoas trans e travestis, não somos números frios, não somos entretenimento ou seres exóticos. Nós também temos necessidade de procurar atendimento à saúde. Aí eu pergunto, a rede de saúde privada e suplementar tem investido em palestras, mentorias, rodas de conversa, programas completos de diversidade e inclusão para melhor acolher a comunidade trans e travesti?