Uma vez, minha esposa e eu estávamos esperando um ônibus em uma longa fila na Avenida Olegário Maciel, próximo ao Mercado Novo. Isso aconteceu bem no início da minha transição de gênero. A alguns passos de nós, estavam dois rapazes, um casal homoafetivo. Um deles (branco) começou a me encarar, me olhando de cima a baixo com uma cara fechada, fazendo sinal de reprovação com a cabeça. O outro rapaz (negro), percebeu a situação e, muito sem graça, pediu que parecesse.
Naquele momento, senti um misto de constrangimento e raiva. Por dias fiquei pensando: ‘Não somos da mesma comunidade? Por que ele me tratou com tanto desdém e preconceito?”
Depois desse dia, comecei a observar mais como a comunidade LGB olha e trata pessoas trans. Não demorei muito para perceber que pessoas trans são uns dos grupos que mais sofrem com estigmas, falta de visibilidade e representatividade dentro e fora da própria comunidade LGBTQIAP+.
Já escutei frases do tipo: “Eu sou um cara gay, mas não vejo a necessidade dessa tal ‘mudança de gênero’, acho isso uma palhaçada.”
Só para você ter uma ideia, quase toda a população trans (94,8%) afirma ter sofrido algum tipo de violência motivada por discriminação devido à sua identidade de gênero em 2020, segundo o levantamento Assassinato de Travestis e Transexuais Brasileiras.
Encarar essas situações, comentários, “piadas”, julgamentos e preconceitos todos os dias é muito desgastante, machuca, cria um sentimento de não pertencimento e leva nossa saúde mental à exaustão. Como falei, essas situações infelizmente também são rotineiras dentro da comunidade LGBTQIAP .
Não é à toa que estudos sobre saúde de pessoas transgênero, da revista The Lancet, revelaram, em 2018, que aproximadamente 60% da população transgênero sofre de depressão.
Esse desdém e preconceito promovido por parte da população LGB contra a população trans é de longa data. Você pode observar isso ao assistir o documentário “A Morte e a Vida de Marsha P. Johnson”. Essa obra mostra como foi a trajetória de Marsha P. Johnson, transexual negra, ativista e drag queen. Ela foi uma das pioneiras pela luta a favor dos direitos da comunidade LGB . Tanto que teve participação ativa durante a Rebelião de Stonewall de 1969. O documentário também mostra como o protagonismo de pessoas trans na luta por direitos foi apagado e também oferece excelentes provocações de como a comunidade LGBTQIAP , ainda hoje, se mobiliza por algumas demandas, mas quando se trata das demandas da população trans, isso é jogado para escanteio.
Em um determinado momento, o documentário apresenta cenas do Comício do Dia da Libertação de Christopher Street, em 1973, e Sylvia Rivera sobe ao palco. Ela também foi uma das protagonistas da Rebelião de Stonewall. Sob vaias e xingamentos de homens gays, lesbicas e bisexuais, Sylvia Rivera faz um inflamado discurso: "Passei o dia todo tentando subir aqui [no palco], por seus irmãos e irmãs gays na cadeia, eles me escrevem toda maldita semana pedindo ajuda! E vocês não fazem nada por eles! Mas vocês me dizem para sair [do palco], com o rabinho entre as pernas. Eu não vou tolerar essa m…! Eu já fui espancada, já quebraram meu nariz. Já fui presa. Perdi meu emprego. Perdi meu apartamento por causa da liberdade dos gays. E vocês me tratam assim? Qual é a p… do problema de vocês?”.
Marsha P. Johnson e Sylvia Rivera, marcaram a luta pelos direitos LGTBQIAP (quando ainda nem existia essa sigla).
Em julho do ano passado escrevi o artigo ‘Como é ser uma pessoa negra e LGBTQIAP no Brasil?’ e fiz algumas perguntas. Agora vou fazer algo semelhante que pode te ajudar a perceber como a população trans ainda enfrenta muitas barreiras para ser acolhida de fato dentro da própria comunidade LGBTQIAP . Vamos lá:
- Quantas pessoas trans ocupam posições de liderança em eventos importantes promovidos pela própria comunidade LGBTQIAP , como paradas e marchas ?
- Qual é o tamanho da representatividade e visibilidade que pessoas trans têm em palestras, rodas de conversa, webinars e workshops sobre a temática LGBTQIAP ? Essas pessoas têm protagonismo nesses eventos?
- Quantas pessoas trans estão à frente de empresas que têm como foco promover diversidade e inclusão?
Seja por meio de “piadas”, “brincadeiras”, apelidos, desdém, falas ofensivas, estigmas, humilhação e estereótipos, já perdi as contas de vezes que sofri transfobia de pessoas que integram a comunidade LGBTQIAP , sobretudo de homens brancos gays. E tenho certeza que tudo isso não acontece só comigo.
A transfobia se manifesta dentro da comunidade LGBTQIAP também por meio da negação do afeto. Muitas pessoas trans não se relacionam romanticamente com ninguém. E muitas vezes isso não por escolha. Para muitas pessoas que integram a comunidade LGBTQIAP , a pessoa trans pode até ser uma “aventura sexual” feita no “sigilo”, mas nunca a pessoa amada.
Ou seja, travestis, mulheres trans, homens trans, trans masculinos, não-bináries, gênero fluido, entre outras tantas identidades de gênero, ainda são invisibilizadas de diferentes formas pela sociedade, inclusive dentro da própria comunidade LGBTQIAP .
Quando as pessoas trans serão abraçadas, incluídas, amadas, valorizadas e respeitadas dentro da comunidade LGBTQIAP ? Quando será de fato uma ilha de acolhimento?
-------------------------------------------------
Quer conversar mais sobre diversidade e inclusão? Meu nome é Arthur Bugre, sou homem negro retinto, trans e neurodiverso. Também sou jornalista e palestrante sobre Diversidade e Inclusão por meio da Bugre: Diversidade e Inclusão.
Instagram: https://www.instagram.com/arthurbugre/
Linkedin: https://www.linkedin.com/in/arthurbugre/