Em 2018 veio a primeira convulsão. A publicitária Daniela Louzada estava no apartamento em que morava, quando foi socorrida às pressas pelos porteiros do prédio. Só sairia do hospital um mês depois com o diagnóstico de câncer cerebral inoperável e sem cura. Ela já vinha sofrendo com dores de cabeça, mas acreditava que elas não passavam de um sintoma de um dia a dia agitado. Sempre que as crises vinham, sacava do bolso uma cartela de remédios e se automedicava. “Quando eu soube o que estava realmente acontecendo com o meu corpo foi um choque”.
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De acordo com a Sociedade Brasileira de Mastologia, 70% das pacientes de câncer de mama veem seus companheiros irem embora depois do diagnóstico e 30% sofre de depressão como consequência desse desamparo. Esse também foi o assunto da semana, no canal do Youtube d'AzMina, no quadro Mas vocês veem Gênero em Tudo?
“Quando eu estava fazendo o tratamento de radioterapia, que é um tratamento muito agressivo, porque queima nosso cabelo, a mulher que estava ao meu lado falava assim: se eu perder o meu cabelo, o meu marido vai me largar”, narrou Dani.
Mudança de vida
Meses antes de receber o diagnóstico, ela tinha conseguido denunciar abusos de militares dentro da Cracolândia, em São Paulo, pois fazia parte da Craco Resiste - um coletivo criado em 2016 para se contrapor a violência policial. Quando não estava lá, era presença constante nas discussões sobre mobilização urbana e valorização do SUS. Pedalava todos os dias 22 quilômetros até o trabalho. Também não faltava em um de seus papéis mais divertidos: mãe da cachorrinha Goiabinha. É dela que Dani diz ter mais saudade quando passa dias fora, no hospital, em uma rotina intensa de tratamentos paliativos.
Hoje, Dani toma remédios anticonvulsivos, que nem sempre bloqueiam as novas crises. Quando há recaídas, precisa passar por internações, quase sempre repentinas. O tratamento fez com que ela perdesse 12 quilos e deixou sequelas como esquecimentos, falta de equilíbrio e fadiga crônica.
Por causa das consequências físicas causadas pelo tumor, Dani precisou se afastar de muitas das atividades que fazia. “Não consigo mais trabalhar e preciso de ajuda para me deslocar. O câncer nos tira muitas coisas”. Há, porém, outras coisas que Dani se sente capaz de viver, mas não consegue, por conta de outro sintoma invisível vivido por mulheres com câncer: “os homens não são afetivos com mulheres oncológicas, acham que é um abuso da minha parte querer me aventurar pela vida sexual... Eles acham que eu preciso me preocupar com o câncer e pronto”. E relembra de uma experiência recente: “Eu saí com o meu andador na rua e não recebi nenhum olhar”, foi como se ninguém a visse.
Essa rejeição, diz Dani, faz com que mulheres usem acessórios para esconder os sinais da doença. “Muitas procuram lenço e perucas por causa disso”, acredita a publicitária que faz questão de manter o visual, como forma de resistência. “Para mostrar que mulheres carecas podem ser lindas e desejáveis”. Para os homens, o diagnóstico parece não afetar tanto a autoestima. “Chego no hospital e, muitas vezes, eu sou assediada por homens com bolsa de colostomia… queria ter essa confiança”, comenta Dani rindo.
No hospital, que deveria ser um espaço mais acolhedor, Dani também viu, diversas vezes, mulheres lutando para serem vistas. Ela lembra de uma situação que viveu no Instituto do Câncer do Estado de São Paulo: “Vi uma mãe ser impedida de fazer exame de sangue, porque ela estava com a filha e os funcionários disseram que a criança não poderia entrar no laboratório.” Dani se ofereceu para ficar com a criança. “As pessoas perguntavam onde estava o pai, mas é claro que ela não tinha com quem deixar. Falta estrutura nos hospitais para acolher a mulher.”
A obrigação feminina do cuidar
Dani nota isso muito antes de se tornar paciente. Em 2014, ela passou 7 meses internada ao lado do pai, que tinha descoberto um câncer no pulmão em estágio avançado. A decisão de assumir o lugar de cuidadora dele foi uma imposição da família. A justificativa era machista: “como única filha mulher, você é obrigada a cuidar do seu pai.” Do hospital mesmo ela trabalhava, cuidava dele e da casa. Ela afirma que não tinha noção da violência que estava sofrendo naquele momento. "Eu só sentia o sofrimento de estar perdendo de uma forma muito brusca a pessoa que eu amava.”
Ao olhar em volta, Dani constatava que quando as mulheres não ocupavam o lugar de pacientes, eram cuidadoras, acompanhando parentes, filhos e primos. Mas por não contarem com esses mesmos cuidados quando adoeciam, precisam encontrar formas de cuidarem de si. Daí a importância de políticas públicas para ampará-las nesse momento. “Eu sempre fui arrimo de família. Muitas mulheres, quando adoecem, são. E a gente precisa de profissionais que cuidem delas e de seu entorno", considera a publicitária
Para Dani, as pacientes precisam ter um suporte financeiro para que não precisem escolher entre o tratamento e o trabalho, que na maioria das vezes inclui uma divisão desigual, somados os serviços domésticos e a maternidade. Com uma renda garantida, poderiam ter uma vivência mais digna.
“Ter câncer é muito caro. Quando você entra no hospital, você encontra uma cartilha enorme falando sobre alimentação, é lindo, mas e na prática?", questiona ela, ressaltando que nosso país está em plena miséria, "as pessoas estão passando fome e as pessoas com câncer não podem passar fome”.
Atualmente, Dani conta com um grupo de amigos que suprem as necessidades do tratamento dela, além de outros custos. Ela também recebe ajuda de outras pessoas por meio de financiamento coletivo. No Canal Terminal, no Youtube, ela compartilha suas histórias e dá apoio para outras mulheres, cuidadores e familiares, que também lidam com a mesma doença.