Por Natália Souza, da AzMina
A memória da luta organizada de mulheres por condições justas de trabalho e contra a desigualdade de gênero foi substituída por uma “uma cafonice social que esvazia a importância política dessa data”. É assim que a deputada federal Erika Hilton avalia as comemorações que movimentam o comércio no dia 8 de março. Uma estratégia que, segundo ela, se parece com a adotada pelos agentes públicos nos espaços de poder: deslocam o debate para um lugar vazio, negam as evidências históricas e distorcem a realidade para enfraquecer a luta por políticas públicas e mudanças sociais.
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Erika Hilton: A falta de compreensão, por parte dos agentes políticos, de que existe desigualdade de gênero. Parece que estamos falando de um ativismo criado nos campos universitários e que não reflete uma necessidade, uma ânsia popular. Eles simplesmente desprezam dados, realidade, estatística, o cenário como um todo. Mas não negam porque desconhecem, negam porque, ao negarem, não precisam se comprometer em lutar ao lado dessas bandeiras e desses grupos, que se organizam para a inclusão de mulheres nos mais diversos espaços da sociedade.
AZ: Esse é o primeiro Dia da Mulher depois de um governo que atacou os nossos direitos. Como foi para você ser mulher nos últimos quatro anos?
Erika: Foi duro. Eu não fui apenas mulher. Fui mulher em um espaço de poder tendo que socorrer outras mulheres. Mas gosto de demarcar que sou uma mulher negra e travesti, que foi expulsa de casa aos 14 anos de idade, tendo que viver da prostituição, assim como ocorre com a maioria das mulheres iguais a mim ainda hoje. Uma trajetória de dor, de perda, de abandono, de humilhação, de violência, à qual o meu corpo e o corpo das minhas são submetidos todos os dias. Então é importante lembrar que antes desses quatro anos, o mundo sempre foi muito hostil para a gente. Mas é claro que com Bolsonaro toda essa violência ficou ainda maior. O que nós precisamos no Brasil, de fato, é o resgate da cidadania de todas essas mulheres que não deixaram de ser cidadãs apenas no governo anterior.
AZ: Qual é a principal reivindicação da agenda das mulheres trans para esse novo governo?
Erika: Difícil sintetizar essa resposta, porque estamos falando de um grupo de pessoas que até agora são invisíveis na sociedade, executadas de forma brutal. Mas eu acho que uma das prioridades para os próximos quatro anos é a inclusão dessas mulheres no mercado de trabalho. Isso gera autonomia, direito à moradia, comida na mesa. Renda e empregabilidade são pautas caras para nós. Se elas estiverem vivas e protegidas, nós vamos conseguir encaminhar as outras pautas.
AZ: Para boa parte da sociedade, o Dia Internacional das Mulheres ficou resumido a receber ou entregar flores. Como você enxerga essa data?
Erika: A data foi banalizada e se transformou nisso mesmo: uma cafonice social onde o marido vai levantar, fazer o café, deixar a flor. E durante todos os outros dias do ano, ele vai ser grosseiro, estúpido e muitas vezes agressor. Não vai ajudar aquela mulher com nenhuma das tarefas domésticas, nem assumir os próprios filhos. A importância política desse dia tem que simbolizar a resistência das mulheres, tem que servir para dizer que mulheres não são uma coisa homogênea. É parte do patriarcado tirar a nossa singularidade, porque aí qualquer coisa serve, não tem que buscar camadas de múltiplas existências. Essa data tem que servir para a gente fazer uma reflexão profunda sobre a trajetória das mulheres na sociedade, em especial das mulheres negras, indígenas, transexuais e travestis, que são as consideradas “não mulheres”. Não vejo problema em dar flores e bombons, mas não precisa de março para isso.
AZ: Como organizar mulheres com realidades tão diferentes em uma luta com um objetivo comum?
Erika: Temos que lutar unidas e juntas, porque o algoz é o mesmo. Não existe um sistema patriarcal e misógino que humilha mulheres negras da periferia, e outro que agride travesti nas esquinas de prostituição. O patriarcado quer que a gente use esses marcadores para nos separar, e acho que a gente tem que ser mais estratégica. Precisamos olhar para o que nos separa como algo que nos potencializa, e não para apagar particularidades, deixando dores de fora. Não importa qual seja a sua dor, em algum lugar ela vai se encontrar com a minha. A dor de uma mulher branca de classe média não pode, talvez, ser comparada à dor de uma menina que foi jogada na rua. Mas a dor dela também é legítima, e parte da mesma estrutura de ódio que massacra e violenta a vida das mulheres. É preciso reconhecer isso, para que a gente possa se organizar e cobrar o poder público.
Todas as lutas que travamos na sociedade em prol da emancipação dos diversos grupos oprimidos só será possível através da coletividade. Todos precisam se comprometer e atuar ativamente por essa transformação. Até porque, não somos nós que nos aprisionamos nos lugares de mazelas, nos lugares de sofrimento. São essas estruturas que, em sua grande maioria, são controladas e dominadas por homens brancos mais velhos. Nós não revolucionaremos o mundo se só as mulheres lutarem, se só os negros lutarem. Todos precisam se perguntar como corroboram com essas violências.