Por Flávia Santos
Você está rolando a tela para cima e se depara com vários vídeos de mulheres crespas e cacheadas que decidiram voltar a alisar os cabelos. Mulheres que desistiram da transição ou que já passaram por esse processo há alguns anos. Estão unidas agora por outro fator em comum: a preferência de usar os fios lisos novamente.
Produtos químicos, escova e chapinha foram por anos cúmplices de uma pressão estética na vida de meninas e mulheres negras. Essa demanda tinha raízes históricas na colonização e escravização, que espalharam a ideia de que pessoas negras deveriam modificar seus traços e cabelos para se adequarem a um padrão de beleza branco.
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Acontece que, após anos de valorização das texturas naturais, nota-se hoje um movimento contrário: mulheres aderindo ao alisamento mais uma vez. Segundo o Google Trends, no período de 2020 até 2022, houve um aumento de 119% de pesquisas na plataforma por "cabelos lisos". A procura por "alisamento de cabelo" cresceu 176% no mesmo período.
Tendência 'anos 2000'
Muitos fatores podem justificar a onda crescente do alisamento capilar, um deles é a tendência Y2K. A expressão adaptada do inglês "Year 2K" significa “Anos 2000”, e representa o retorno da moda e estética dessa década, das calças de cintura baixa até os óculos coloridos e os celulares com flip. Artistas e celebridades adotando aquele cabelo liso escorrido remetem à era das Destiny 's Child e Britney Spears, ícones e referências de estilo e beleza do início do milênio.
O resgate da tendência Y2K na internet tem efeitos negativos para os tempos atuais. A valorização dos cabelos alisados, por exemplo, é vista como prejudicial, principalmente às mulheres negras. Além do retorno desse padrão estético, existe a reedição da ideia - questionável - de que o cabelo alisado dá menos trabalho.
A estudante de publicidade Carol Figueiredo, que passou pela transição capilar três vezes, decidiu voltar a alisar mais recentemente. O ponto de partida para a influenciadora digital foi a dificuldade de cuidar dos fios, e o relaxamento foi uma opção para facilitar sua rotina. Ela tentou primeiro o botox , mas achou que o cabelo ficou feio, porque não era nem liso, nem cacheado. "Fiquei com muita dificuldade em lidar e acabei alisando de uma vez.”.
Carol chegou a acreditar que poderia assumir o seu cabelo natural e passar pela transição. Ver mulheres negras e afro texturizadas na mídia foi fundamental para ela. “Eu fiquei muito feliz quando vi os cachinhos formados, embora não tenham ficado 100%”, recorda Carol, que vivia em um ambiente com mais pessoas brancas.
Depois de tentar algumas técnicas, se frustrar com os resultados, voltou a alisar. Transacionou novamente. Por fim, admitiu a insatisfação quando o cabelo não ficava como o de outras mulheres cacheadas e, pela terceira vez, fez o relaxamento dos fios.
A ideia de que tratar de cabelos cacheados e crespos é mais trabalhoso vem da necessidade de esconder volume, frizz e ressecamento - muitas vezes considerados defeitos quando, na verdade, são características desse tipo de cabelo.
Cabelo natural mesmo
A analista de mídias sociais Hailanny Souza viveu a experiência da transição capilar aos 26 anos e encontrou no YouTube dicas, técnicas e produtos para cabelos naturais. Ela testou todos os tutoriais possíveis de finalização de cachos: fitagem com o dedo, com caneta, com papel, presilhas etc.
A dedicação envolvia métodos de lavagem, secagem, finalização e manutenção dos fios ao longo do dia, da noite, day after (que é o cuidado no dia em que não se lava o cabelo) e até durante o sono. Hailanny percebeu, então, que todas as soluções apresentadas exigiam um grande investimento de tempo e dinheiro.
“Eu gastava metade de um pote de creme e quase nunca dava certo. Eram cremes caros. Todo mês eu estava comprando produtos para usar no meu cabelo, para cachear", contou a analista, que investiu muito dinheiro em busca do cabelo impecável.
Foi em uma saída de última hora com os amigos, que o jogo virou para Hailanny. Ela tinha 30 minutos para deixar o cabelo pronto. “Peguei um borrifador, botei água, um pouco de creme para pentear, passei no meu cabelo e fui soltando os cachos. Me achei incrível, maravilhosa e linda.”
Cansada de todas as regras, produtos e técnicas para chegar a uma aparência final muito específica, Hailanny decidiu abraçar seu cabelo natural real. Poderoso e sem definição. Começou a seguir influenciadoras nessa linha, como a ex-BBB Rízia Cerqueira, e percebeu que poderia mudar seus hábitos capilares. Os cremes e produtos, que só duravam um mês, passaram a render muito mais.
O custo além do dinheiro
Além do gasto, outros fatores precisaram ser considerados durante a busca pela juba perfeita. Algumas pomadas usadas na manutenção de tranças e baby hair, para evitar o frizz e alinhar os penteados, chegaram a ser retiradas do mercado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) por causarem lesões oculares e irritação na pele.
O problema já acontecia há alguns anos, mas só teve a atenção do órgão a partir do envolvimento de personalidades da internet como Bielle Elizabeth, que ficou dias sem enxergar após a pomada escorrer em seus olhos. Em uma live na rede social, a ex-BBB Tina Calamba, também revelou perda temporária da visão após usar uma pomada capilar modeladora.
Assim como Tina e Bielle, as ocorrências eram principalmente com pessoas que tomaram chuva, banho de mar ou piscina após usarem o produto. Isso fez a Anvisa interditar o uso de qualquer marca ou fabricante até que testes e investigações fossem feitas para garantir a segurança dos consumidores. Recentemente, a agência de vigilância divulgou uma lista de mais de 900 marcas que podem voltar ao mercado, mas o monitoramento de casos adversos associados aos produtos continua em andamento.
Valorização seletiva dos cachos
A cultura de pessoas viciadas em produtos caros, infinitas informações de belezas por vezes conflitantes, deixaram muitas mulheres frustradas com seus cabelos. Mas já há especialistas corrigindo esse curso em direção a simplicidade. “Você foi ensinada a vida inteira que o cabelo natural é feio ou que só é bonito se não tiver frizz, volume… Isso é o cabelo real”, explica a historiadora e expert em cachos e crespos, Paula Silva.
O “Natural Hair Moviment”, que significa Movimentos dos Cabelos Naturais, começou a ser semeado na década de 1960, com ativistas como Angela Davis e Elaine Brown. Tratava-se de um ato político contra os padrões de beleza eurocêntricos, e se espalhou por outras partes do mundo para promover aceitação e valorização dos cabelos afro texturizados.
Atualmente, em uma nova onda, ativistas se mobilizam contra a imposição dos cachos perfeitos, que exclui texturas crespas. O objetivo agora é desconstruir a pressão de ter cabelos comportados e domados. “Uma pessoa que resolve assumir os cachos ou crespos e vai para o YouTube aprender a lidar com o cabelo se frustra”, alertou Paula Silva. É que grande parte das dicas de finalizações dos cachos não se encaixam no dia a dia das mulheres. "Não tem condição você passar duas horas finalizando o cabelo, sabe?”
A cabeleireira aponta outro hábito comum: pessoas que sempre terceirizam o cuidado do cabelo para o salão. Elas costumam lavar os cabelos no cabeleireiro uma vez por semana, escovam e saem com ele pronto. Mas, quando essas mesmas mulheres passam pela transição capilar, sem uma reeducação sobre como finalizar o cabelo em 20 minutos de forma prática, acabam se desencorajando a manter os fios naturais.
Além da questão mercadológica, que induz o consumo excessivo de produtos, Paula acrescenta que é preciso considerar o algoritmo e a entrega das redes sociais. Em uma busca rápida no Instagram por #cabelonatural, que rende aproximadamente 800 mil resultados, os tipos mais valorizados são cachos soltos que crescem para baixo, não para fora ou para cima, definidos e sem frizz. A estudiosa e cabeleireira avalia que isso é reflexo do comportamento racista, já que o algoritmo é alimentado com dados que retratam a sociedade.
O comportamento histórico de inferiorizar as características que remetem à negritude não pode ser esquecido. A naturalização do racismo alimentou discursos e práticas de apagamento da diversidade dos cabelos afro.
Um movimento forçado
Uma forma de opressão foi trocada pela outra. Várias mulheres se sentiram forçadas a entrar no movimento de volta aos cabelos naturais sem estarem preparadas - considera a neuropsicóloga com abordagem em relacionamento e autoestima Nathália Rocha.
“Você sai da imposição do cabelo alisado, mas permanece presa na expectativa do que o outro considera bonito”, explica ela, acrescentando que, se a mulher negra de cabelo crespo não está com a autoestima realmente trabalhada, acaba cedendo a esses padrões mais uma vez.
As entrevistadas Hailanny e Carol concordam que os cabelos alisados com produtos químicos acabam dando tanto trabalho quanto os cacheados e crespos, já que é preciso fazer escova frequentemente, chapinha na raiz todos os dias e retoques. Mas o rótulo sobre os cabelos afro-texturizados como “desleixados” ou “bagunçados” pesa mais.
“Não é fácil lidar com cabelo sendo negra, seja ele liso, cacheado, de qualquer forma", disse Carol. O problema não é o tipo de cabelo em si, mas a imposição de padrões inatingíveis e que discriminam essas mulheres.
A psicóloga Nathália, que conduz uma clínica antirracista, conclui que lidar com a pressão estética é uma demanda coletiva, não apenas individual. No entanto, ela indica estratégias pessoais que podem ajudar. Veja algumas delas:
- Liberta-se da necessidade de validação externa
- Usar a internet a seu favor, buscando mulheres que compartilhem das mesmas características físicas e culturais. A pressão estética é consequência do racismo que mulheres negras enfrentam diariamente, mas referências positivas podem ser uma ferramenta poderosa na construção de uma autoimagem saudável
Refletir e sustentar a escolha. O cabelo crespo oferece versatilidade para as mulheres negras, mas “será que é porque a pessoa realmente quer ou acha bonito, ou simplesmente porque está seguindo uma tendência popular?”.
A reportagem original também pode ser lida no portal d'AzMina.