Acordou com vontade de ficar na cama, mas se levantar não era uma escolha, era obrigação.
Enquanto tomava seu café abriu seu e-mail e lá estava mais um relatório escolar para sua coleção.
“O aluno não ligou a câmera e foi desligado da aula.”
“O aluno não fez a tarefa de matemática.”
“O aluno riu durante a aula de inglês.”
“O aluno ficou conversando no chat com os colegas sobre assuntos aleatórios durante a aula de português.”
Falou com as outras mães no grupo do WhatsApp, não deu para saber qual tinha a maior coleção de relatórios. Todas exaustas.
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A Dona Hermínia que habita em nósSer mãe na pandemia Empreendedorismo materno: tinha uma pandemia no meio do caminhoPaternidade e maturidadeMe deixa ser fora do padrãoCultura do estupro: a vítima não é ouvidaSabores da TerraImorrívelO incomívelNão está tudo bem com as mães e aceitar isso também é necessárioÀ tarde se sentou para entregar o projeto, trabalhava muito, mas precisava fazer também o que a remunerava. Tentava raciocinar nos intervalos entre os chamados: mãe, mãe, mãe... Tentava contornar as brigas entre irmãos inventando atividades manuais. Mal começou a produzir, já está hora do jantar e colocar as crias na cama. Aproveitou o sossego para trabalhar madrugada adentro para o chefe não reclamar que sua produtividade estava caindo.
Foi dormir lá pelas tantas e, quando viu, já era hora de acordar. Levantou-se para preparar o café, com vontade de continuar na cama. Abriu o e-mail e ignorou os comunicados da escola. Colocou as crianças na aula. Câmeras ligadas. Oremos.
A internet caiu. Voltou. A câmera desconectou. O computador travou. A filha chorou. O filho ficou nervoso e esbravejou. Ela parou e respirou. Reiniciou o computador. Chamou a filha de volta. Fingiu que não viu que a menina está com Amoeba grudada no cabelo. Correu no grupo de mães para descobrir se tinha como tirar aquele grude sem deixar a menina careca.
O filho voltou para a aula. Ela fingiu que não viu que ele lia “Harry Potter” pela centésima vez fingindo que estava prestando atenção na aula.
Tira a poeira da casa, recolhe a roupa suja jogada no chão. Faz macarrão no almoço, esquecendo todo o aprendizado sobre os nutrientes importantes para uma infância saudável. À noite, faz pipoca, hoje pipoca é janta! Anota na lista da geladeira: comprar macarrão instantâneo. Essa semana, algumas fadas vão morrer. Coloca os filhos na cama e dorme babando no teclado do computador.
Acorda com torcicolo e escreve uma carta para a escola:
“Querida coordenação, queridos professores,
Entendo que o trabalho de vocês é necessário, essencial, e que a pandemia também afetou a vida de vocês, mas, por favor, não cobrem tanto dos alunos. Depois de 14 meses a vida já tem nos cobrado muito. Perdemos amigos, perdemos parentes, perdemos ídolos. Perdemos a liberdade de ir e vir. Somos os idiotas do 'fique em casa', valorizamos a vida, a nossa e a dos outros. Não esperávamos viver uma quarentena infinita. Se as crianças não estão fazendo as tarefas, ou não conseguem assistir com atenção a todas as aulas, não é porque as mães não estão se esforçando, é porque ninguém aguenta mais.
Pode parecer que eu sou uma mãe desnaturada, que não sei o que acontece dentro da minha casa, eu sei sim. É porque sei que desisti de exigir deles mais do que eles são capazes.
O passarinho preso na gaiola canta de tristeza. Nós estamos assim, feito passarinhos na gaiola. Eu tenho tentado ser o Guido do filme 'A vida é bela' enganando a mim mesma fingindo que está tudo bem.
Minha esperança está morrendo aos poucos. Sobrevivo de pequenas gotas. Uma pessoa vacinada, um dia de sol, uma CPI, um menino rindo de um malfeito.
A vida já está cobrando demais de todos, precisamos que a escola acolha, que seja um refúgio. Mesmo que virtual. O conteúdo é importante, mas as cobranças se tornam desnecessárias quando existe prazer em aprender. Continuem me mandando relatórios, especialmente aqueles que falam sobre as crianças rirem no meio da aula. Se elas ainda encontram motivos para rir, ainda há esperança.”