Sala de aula. Era o último dia daquele ano letivo. Não para ela, que ia pegar recuperação em matemática. Tinha 11 anos e seria sua primeira recuperação. Matemática estava se tornando uma tortura.
As equações foram crescendo, todos aqueles números dançavam na sua cabeça. Ficava nervosa, roía as unhas, tentava se concentrar, se perdia em mil pensamentos. Quando voltava para a prova já tinha esquecido qual era a conta que estava fazendo.
A professora entregou uma folha de papel ofício para cada aluno e deu as instruções. Cada um deveria colocar seu nome na parte superior do papel e entregar a folha para o aluno sentado à sua frente. Cada aluno deveria escrever na folha do colega a sua opinião sobre ele.
As folhas iam passando por ela, e ela ia escrevendo: te acho legal, você é engraçado. Mas o que queria mesmo era poder dizer:
Você é linda e bem resolvida, eu queria ser como você.
Você é um grosso e não devia falar assim com as meninas.
Eu fico triste quando você ri de mim. Eu queria jogar vôlei tão bem quanto você.
Quando a folha dela passou por toda a classe e voltou para ela, ela começou a ler o que os colegas haviam escrito:
Deveria se relacionar melhor com outras pessoas, pois se relaciona com poucos. – Rodrigo
Muito tímida, mas se relaciona bem. – Ana Cristina
Sempre respeita todos, é amiga, só acho um pouco calada. – Maria Flávia
Legal, nem um pouco egoísta, aberta. Acho que precisa falar um pouquinho mais. – Gisela
Muito legal. Precisa se abrir mais com a turma e se entrosar com os colegas. – Jair
Muito prestativa, adoro você. Precisa engordar. – Flávia
Você é muito educada. – Vinícius
Muito tímida. – Gustavo
Legal, mas tímida. – Fernando
Estudiosa. Deve se abrir um pouco com a turma. – Armando
Simpática, meiga e inteligente. – Romero
Tímida e superlegal. – Fernanda
Muito tímida, mas já consegui conquistar sua amizade. – Adriana
Você é legal do jeito que é. – Sandra
Muito legal, mas deveria se integrar mais na turma. – Edson
Te adoro, mas deveria ser mais aberta. – Érika
Ela continuou lendo e parecia que a palavra TÍMIDA pulava na frente dos seus olhos, piscando como uma placa luminosa. Ela se viu resumida nessa palavra. Uma única palavra que a definia.
Ela tinha mesmo vergonha de conversar, tinha medo de ser julgada, de rirem dela. Tinha medo de ser chamada de boba, de não entender a piada.
Naquele ano, muita coisa tinha acontecido e ela foi ficando assim. Se protegendo no escudo da timidez.
Tinha aprendido que era horrível ser sempre a última a ser chamada para o time nos esportes coletivos na aula de educação física. Sentia vontade de ser invisível sentada naquele banco, seria melhor do que ter que ouvir os comentários: “Não, ela não!”. Chegava a ter dor de barriga de nervoso e passava a aula toda no banheiro para não ter que jogar. Pelo menos assim não passava vergonha errando todos os saques, ou quase desmaiando cada vez que conseguia pegar a bola de manchete.
Queria jogar tão bem quanto as outras meninas. Tinha até feito escolinha de vôlei para tentar melhorar, mas lá também riam dela. Era desengonçada, fraquinha, magrelinha, um fiapinho de gente.
Quando tentou jogar futebol, levou uma bolada na barriga no primeiro minuto de jogo e desmaiou.
Fora da quadra, a vida também não estava fácil. Ela era fã da Cyndi Lauper e da Madonna. Gostava de roupas e sapatos muito coloridos e nunca estava na moda. Nem sabia o que era isso. Riam dela. Apontavam. Cochichavam.
E mesmo não falando nada, ainda aparecia alguém falando:
“Seu cabelo é liso demais!”
“Suas pernas são finas demais!”
“Você está muito magrinha, precisa engordar!”
“Melhora essa postura, menina!”
Não podendo ficar invisível, ficou tímida. Retraída. Encolhida. Encurvada. Fazendo de tudo para não aparecer, para não correr o risco de rirem dela. Para não ter que escutar comentários sobre a sua aparência. Ela tinha espelho em casa, e gostava do que via, mas foi deixando de gostar de tanto apontarem defeitos que não existiam.
Preferia conviver com os bichos. Passava horas sentada observando os peixes do seu aquário. Queria morar lá dentro.
Não era timidez. Era tristeza. Insegurança. Era medo de ser julgada. Não podia ser ela mesma. Não conseguia agradar a ninguém. Sempre tinha um defeito a ser corrigido. Sempre tinha um porém. Sempre tinha uma comparação. Aquela timidez tinha outro nome, era sinal da depressão que estava chegando. Que foi crescendo. Que um dia tomou conta dela toda. Que virou vontade de não estar viva.
#setembroamarelo