Bonito, bem de vida, gentil. Do tipo que ainda manda flores. Conquista a família, conquista os amigos. Bom papo.
Gaia entrou naquela relação ouvindo todo mundo dizer que havia tirado a sorte grande. Ele tinha casa, tinha carro, trabalhava, ganhava bem. Era apaixonado por ela.
“Que casal perfeito vocês formam!”
“Nossa, como ele é bom pra você!”
“Ah, mas ele te dá tudo!”
Ela não tinha muita coisa. Estudante universitária, estagiária, sem grana. Saindo de um relacionamento que a deixou quebrada. Embarcou na nova relação como muleta, foi ensinada que precisava estar com alguém para se sentir bem. Tinha a aprovação de todos, o que mais poderia importar?
Não entendia, mas sentia que algo não estava certo, só não sabia o que era. Era só uma sensação, um mal-estar. Não conseguia pensar em uma resposta racional para aqueles sentimentos.
Ele tinha uma coleção de Playboy no quarto, coisa de homem. Se referia a outras mulheres com as quais havia se relacionado como “piranha”, vai ver elas não prestavam mesmo. Não era assim que ela tinha aprendido? Que tem coisa de homem que mulher tem que aceitar pelo bem do relacionamento? Nossos valores não devem ficar abaixo dos valores deles?
Contratou prostituta para a despedida de solteiro do noivo da amiga, fez isso com a amiga! Não dá para justificar. Quando ela soube disso ficou extremamente incomodada, mas não era motivo para terminar, aconteceu antes de eles se conhecerem.
Confessou que, num carnaval, levou uma mulher para o apartamento, fez sexo com ela e ela dormiu. Saiu do quarto e deixou o amigo entrar.
A moça acordou com alguém que não conhecia fazendo sexo com ela, gritou, brigou, esbravejou e foi embora sem denunciar. Coisa de homem. Gaia ficou escandalizada, aquilo era errado, muito errado. Era estupro.
Ele falava como se existissem dois tipos de mulher, as vagabundas e as de família. Mas não foi assim que ela havia aprendido também? Por que ela não aceitava?
Muitas festas, viagens incríveis, presentes. Ele até emprestou dinheiro para os sogros quando ficaram apertados de grana. E emprestou dinheiro para que ela pagasse seu último semestre da faculdade para que pudesse pegar seu diploma.
Ela foi envolvida por aquela rede. Foi ficando presa. Precisava ser grata. Não era uma relação equânime. Eles não estavam em pé de igualdade. Ele fazia as suas gentilezas, a moeda de troca era sexo. Gaia era um troféu. Uma figura para ser exibida para os amigos e a família. Uma boneca inflável na cama. Anulou seus sentimentos e desejos. Enquadrou-se naquele papel.
Um dia, bebeu demais, perdeu a consciência. No dia seguinte, ele contou que ela havia dormido enquanto faziam sexo, e ela perguntou o que ele fez depois que ela apagou: “Eu continuei!”.
E foi a naturalidade com que ele pronunciou aquelas palavras que a fizeram sair daquele transe e entender que estava sendo usada. Mas não foi fácil se libertar daquela relação. Ela sentia pena dele, se sentia ingrata, como se ela fosse a vilã da história. Uma pessoa ruim.
Meses se passaram até ela conseguir dar um fim ao relacionamento. Ninguém entendia como ela podia estar tão feliz e sorrir daquele jeito depois de deixá-lo devastado. Depois de tudo que ele havia feito por ela. Gaia não se importava, ela podia ser a vilã da história para quem estava vendo tudo de fora. Ela sempre se identificou mais com as bruxas do que com as princesas. O importante é que ela estava feliz e não precisava de ninguém para sentir essa felicidade. Ela estava sozinha e completa como nunca esteve antes.
Como muitas mulheres, Gaia levou muitos anos para entender que viveu uma relação abusiva, que sexo sem consentimento é estupro. Que não poder escolher nada porque tudo era presente a tornava parte do pacote da diversão. Ela nunca contou para ninguém, mas ele era só um lobo em pele de cordeiro.