No Brasil, a gravidez só pode ser interrompida quando acontece em decorrência de estupro, quando o feto é anencéfalo, ou quando apresenta risco à vida da mãe. Mas o que acontece é que muitas mulheres fazem aborto ilegal e, ao mesmo tempo, mulheres que se enquadram num desses três casos em que o aborto é permitido por lei são desencorajadas a fazê-lo.
Desde abril de 2012, o Brasil não avança em relação ao direito ao aborto. Você já parou para pensar sobre o assunto? Vou contar três histórias reais, que ocorreram há mais de uma década, alterando apenas os nomes das pessoas para preservar suas identidades.
Clarissa
Clarissa não foi presa. Não precisou usar o SUS. Não ficou internada. Ela é branca, classe média. Teve acesso a uma boa educação. Ela tinha 19 anos, tinha um namorado, fazia faculdade e descobriu que estava grávida de cinco semanas.
Ela queria aquele bebê. Contou para as amigas, para os colegas de faculdade, mas o namorado não queria filho naquele momento. A mãe era católica, pró-vida, mas também não achava que era hora de a filha ter um bebê.
Foi acompanhada pela mãe e pelo namorado àquele consultório naquele prédio chique. A ginecologista fez o aborto no mesmo dia. Clarissa, deitada, ouvia o barulho daquela máquina sugando o feto. Quando terminou o procedimento a médica disse que o problema estava resolvido.
Ela sofreu muito. Sua vontade não foi ouvida. Mas o sofrimento foi emocional. Fisicamente, ela estava bem, sem nenhuma consequência. Ela teve um atendimento digno. Não correu risco de morte. A família tinha dinheiro para pagar.
Esse texto faz parte do livro "Sem paraíso e sem maçã" publicado em 2020.
Ana
Ana tinha 19 anos, havia acabado de passar no vestibular, quando engravidou do namorado. Descobriu a gravidez quando já estava com quase dois meses. Não teve tempo para amadurecer a ideia. Não teve uma rede de apoio para acolhê-la.
O namorado não pediu para ela abortar, mas também não disse que a apoiaria se ela quisesse ter o bebê. Infelizmente, é preciso um espermatozoide para que a mulher gere um filho, mas falta homem para encarar as responsabilidades da paternidade.
Contou para poucas pessoas esperando apoio. Não teve. Só ouviu que não poderia ter aquele filho, que seus pais não aguentariam a notícia. Sentiu-se sozinha. Queria que alguém a encorajasse a levar adiante. Apaixonou-se pelo bebê assim que ouviu seu coração batendo naquele ultrassom. Levou aquela imagem impressa. Seu namorado a aguardava do lado de fora. Nem quis ver a imagem. Levou-a para sua melhor amiga. Ela também não quis ver, não queria criar aquele sentimento. O sentimento dela era só dela, não teve com quem dividir.
Sentiu-se culpada por não ter enfrentado as pessoas. Por não ter tido forças para assumir sozinha. Culpa-se por ter deitado naquela cama e deixado seu bebê ser sugado. Aquela dor a acompanhou. Mesmo depois de casada. Mesmo depois de ter engravidado novamente e ter tido uma filha.
Queria ter sido acolhida. Queria ter tido apoio. Queria não ser julgada. Sempre reza pelo bebê que se foi. Sempre pede perdão. E tenta se perdoar.
Esse texto faz parte do livro "Sem paraíso e sem maçã" publicado em 2020.
A menina
“Ela estava na maca ao meu lado. Eu tinha 28 anos, casada, engravidei tomando pílula, sem planejar, gravidez tubária, perdi o bebê. Fui operada. Ela tinha 16, engravidou do primeiro namorado. Tentou abortar em casa. Eu fui operada às pressas; a trompa rasgou. Hemorragia interna. Ela foi operada às pressas; o cabide que ela usou no momento de desespero perfurou o útero. Hemorragia severa.
Eu tinha minha família me apoiando, meu marido na sala de espera. Ela tinha um namorado de 19 anos que a ajudou pesquisando como fazer aborto em casa e no procedimento.
Eu senti a dor de perder um bebê e a dor física de toda a situação. Ela sentiu desespero, medo, dor, arrependimento, culpa, julgamento e mais dor.
Eu estava tranquila, medicada para a dor física e de roupas limpas. Ela estava coberta de sangue, pingava da maca. Estava desesperada, tentava justificar em meio a lágrimas que achou que o pai ia matá-la, e que ela estava perdida e não pensou direito... Ela implorava por medicamento para dor.
Eu fui bem tratada durante todo o processo, as enfermeiras me falaram que eu teria outro bebê em breve, uma ficou fazendo carinho no meu cabelo enquanto eu aguardava no pós-operatório. Fui muito bem acolhida, me cobriram porque a anestesia me fez sentir frio.
Ela ouviu que colheu o que plantou. Ela foi julgada por todos ali. Ouvi dizerem, para ela ouvir, que ela estava merecendo aquela dor, que deu sorte de não morrer! A enfermeira só levou o cobertor para ela quando eu pedi pelo amor de Deus! Ela tremia muito.
Senti a dor dela ali, mais forte que a minha, a dor na alma, a dor que vinha junto com mil sentimentos, aos 16! A dor que extrapolava o coração dela e atingia o meu!! Pude sentir a agonia dela! Chorei pelo meu bebê, e chorei por ela, com ela!
Uma menina, desesperada, achou que não tinha opção! Uma menina jogada e sendo julgada por diversas mulheres, que talvez quando meninas, se tivessem engravidado, fariam o mesmo diante da pressão de um namorado. Ou não. Não importa. O que importa é que não precisa ser como foi!
Em vez de quase morrer, ela poderia ter tido atendimento, aconselhamento, acolhimento!”
Relato de Mariana Lacerda, que viveu essa situação em 2009.
Selecionei apenas três histórias entre dezenas, todas muito parecidas. Jovens confusas, sem apoio emocional. Com medo. Sofrendo sozinhas. A Ana precisou de muito tempo para se perdoar. Clarissa não escolheu, escolheram por ela, quem teve que dar conta das consequências emocionais? Será que a menina da última história sobreviveu? Será que se ela não tivesse tanto medo dos pais ela teria tomado aquela atitude?
Eu não tenho respostas. Mas uma coisa é fato. Ser a favor da descriminalização do aborto não é ser a favor do aborto. Aborto é uma realidade. Mulheres abortam, mesmo sendo ilegal. Mulheres abortam por escolha própria, ou abortam obrigadas, mas abortam. E elas merecem segurança, suporte, apoio psicológico, atendimento médico adequado.