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Um recorte do Brasil

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Minha caminhada matinal. Havia chovido à noite. Naquela calçada molhada, mais uma barraca. Bem ali, naquela rua, chegaram novos vizinhos para os idosos. Uma família inteira. Teto de lona. Um casal, duas crianças, um cachorro, o fogão improvisado. A uma quadra dali morava Ágata, uma mulher trans que, no inverno passado, me pedira um cobertor porque estava passando frio. Alguns dias depois de lhe dar o cobertor, encontrei-a estudando geografia sentada no meio-fio. 




 
Faz tempo que não vejo Ágata, mas as barracas continuam ali, encostadas na grade onde estão fixados cartazes, um escrito FOME, assim, fome maiúscula ao lado de uma bandeira do Brasil. O Brasil tem fome. Naquelas barracas, as pessoas sobrevivem de doações. O casal de idosos tem um cartaz na grade: “Aceitamos doações, recebemos livros” e o número do PIX. Todas as manhãs passo por eles, a calçada sempre muito limpa, ele toma café depois varre. Dou bom-dia e sigo meu caminho.

Na rua, o trânsito é intenso. Os carros blindados. Os vidros escuros de quem não quer ser visto, e também não quer ver. O cadeirante que passa pelos carros estendendo a mão pedindo uma moeda, um homem invisível. Outras barracas ao longo do meu percurso. Um ciclista. Um sabiá cantando no alto de uma árvore.
 
Paro para tomar um café, olho o celular. Nas mídias sociais, o vídeo de um homem que humilha uma senhora para quem levava marmita. O cristão, o cidadão de bem que só quer fazer caridade. Em um grupo de mães algumas defendem o homem. Fim dos tempos.




 
A notícia da menina de 11 anos, grávida pela segunda vez. A falha do sistema que não a protegeu. Onze anos é criança. Não tem idade para ser mãe, só tem idade para ser filha! Dizem que não pode fazer aborto porque é crime. Não é crime, é aborto legal. Crime é deixar uma criança ser estuprada “N” vezes. Crime é deixar uma criança ter um filho fruto de um abuso. Crime é deixar que aconteça outra vez. Crime é deixar a criança longe da escola, já que educação é um dos direitos dela. Ela não é a única.
 
Eu não acho que castração química resolva, porque esse tipo de violência não ocorre por desejo sexual, ocorre por poder, por homens acharem que têm direito sobre corpos de meninas. Não se violenta apenas com o órgão sexual, é bem pior do que imaginamos. Para um adulto que faz isso com uma criança, cadeia é pouco, imagino punições inimagináveis.
 
Mudo de rede social, e leio: “Não existe sereia negra”. Ele fala da “Pequena Sereia", com Halle Bailey como Ariel. Logo após a divulgação do trailer do live-action, o vídeo ganhou uma série de dislikes no YouTube. Bando de chiliquentos! Fragilidade branca a gente co- nhece bem de perto. Se o racismo antes era velado, hoje é escancarado. Se antes tinham vergonha de assumir, hoje têm orgulho. 





Sigo para o supermercado; sentado na calçada, em frente à entrada, um homem oferece balas: “Moça, compra uma balinha para me ajudar a sobreviver?”. E um senhorzinho me pede dinheiro: “Senhora, me ajuda, preciso comprar gás, alimento... Essa semana eu só comi macarrão instantâneo, que é a única coisa que eu consigo cozinhar com álcool.”
 
Abro o whatsapp e tem gente dizendo: “Se você analisar os números, vai ver que está me- lhorando”.  Que números? O número de fa- mintos, de desabrigados? Talvez você não nunca ande a pé pelos centros das cidades. Talvez você não pare seu carro no semáforo. Ou talvez você não olhe para quem está batendo na sua janela. Quem bate é a fome! Mas essa fome não importa quando se tem fome de poder. Me poupe desses seus números que dizem que a economia vai bem. Vai bem para quem? Para quem ganha salário mínimo, que não tem aumento real há anos? Ah, mas a culpa é da pandemia, a culpa é do fique em casa. Culpa-se tudo, menos as absurdas ações políticas de má-fé. Me poupe. Apenas me poupe.