Jornal Estado de Minas

Padecendo

Descrença na meritocracia


 
É fácil falar em meritocracia quando temos condições de pagar pelo estudo dos nossos filhos, escolher uma excelente escola, pagar por atividades extras como curso de línguas, esportes etc.




É fácil falar em meritocracia quando a gente viaja várias vezes por ano, quando nossos filhos têm acesso ao lazer e à cultura. Quando podemos dar a eles uma alimentação balanceada, o conforto de um lar estruturado, um quarto só para eles. Quando estamos disponíveis para eles, presentes.
Mas quando vemos de perto realidades dife- rentes das nossas, quando temos a possibilidade de realmente enxergar como vive a maioria das crianças do nosso país, nossa visão muda.
 
Fora do nosso universo cor-de-rosa, crianças dormem em colchões no chão ou dividem camas. Várias pessoas dormem no mesmo cômodo, dividem o mesmo banheiro (quando têm banheiro). É tanta gente em casas tão pequenas, que as crianças preferem ficar na rua. As mães precisam sair para trabalhar. Se os filhos só ficam meio período na escola, na outra metade do dia eles precisam ficar sozi- nhos, o mais velho cuidando do mais novo. 
 
Eles vão a pé para a escola, em grupos ou sozi- nhos, não têm adultos para acompanhá-los. São crianças que passam fome! Passam frio. Alguns moraram na rua, se protegem com caixas de papelão. Outras moram em lugares onde é comum ver pessoas mortas no meio da rua, onde elas podem ser as próximas baleadas. 




 
Muitas crianças do nosso país têm acesso à escola, mas se apresentarem qualquer dificuldade, não conseguem aprender. Enquanto nossos filhos terão acesso a terapias, aulas particulares, e tudo mais que pudermos pagar, há crianças de 10 anos que não sabem ler. Que diante da dificuldade não tiveram acesso a nenhum tipo de suporte.
 
Ficam muito tempo sem diagnóstico, esperando na fila por uma avaliação no sistema público. O tempo vai passar, o interesse de estar na escola vai diminuir. Elas vão sair da escola e virar isca fácil para o tráfico. É uma dificuldade buscar atendimento psicológico, sobretudo psiquiátrico. Têm muitos  serviços gratuitos, mas os atendimentos são interrompidos. No SUS é burocrático, temos excelentes profissionais, mas demora, a infância passa rápido! Como podemos dizer que elas têm a mesma oportunidade dos nossos filhos? Como dizer que basta elas se esforçarem?
 
Nossa visão política e social, vendo e atuando ativamente com pessoas que vivem essa realidade dura, muda. Ficar horas correndo atrás de soluções e não encontrá-las é frustrante!
Não bastasse tudo isso, ainda criminalizam a pobreza. Quem nunca teve essa visão de mundo? Não adianta falar: venda seu carro, venda seu telefone, leve um morador de rua para viver na sua casa, você é comunista de iPhone! O problema da nossa sociedade é achar que soluções para problemas coletivos estão em atitudes individuais! 
 
É um compromisso ético ter um mínimo de consciência social. Precisamos de pesquisas, de políticas sociais. Precisamos reverter a visão preconceituosa em relação às pessoas que exigem maior atenção do Estado. 
 
É angustiante ver uma criança sofrendo e não encontrar meios de auxiliá-la. Nossa ajuda é importante no campo individual, mas ela é paliativa, precisamos da cura, da prevenção.  Precisamos acreditar na mudança coletiva.

* Adaptado do texto original da minha amiga Letícia Greco.