Jornal Estado de Minas

PADECENDO

Fernanda, uma profissional da saúde vivendo no Gabão

Conteúdo para Assinantes

Continue lendo o conteúdo para assinantes do Estado de Minas Digital no seu computador e smartphone.

Estado de Minas Digital

de R$ 9,90 por apenas

R$ 1,90

nos 2 primeiros meses

Utilizamos tecnologia e segurança do Google para fazer a assinatura.

Experimente 15 dias grátis



Hoje vou contar a história da Fernanda Reis, uma mãe mineira de Belo Horizonte que está morando no Gabão. Ela é terapeuta ocupacional e em março começou a trabalhar numa escola especial, uma ONG que funciona de forma similar a uma Apae, embora muito mais precária, tanto em termos de estrutura física, quanto de recursos terapêuticos, capacitação dos profissionais, sem falar na situação das famílias.





Desde a  semana passada, muitas escolas gabonesas já estão de férias (as férias longas acontecem no meio do ano). Com isso, algumas professoras estão levando seus filhos para a ONG, elas não têm com quem deixar as crianças. E muitas das crianças que a Fernanda atende já não estão indo mais, então ela fica mais tempo sem atendimento. As professoras têm levado os filhos para a sala dela, segundo elas para conhecerem-na. 

Sempre que chega alguma criança, ela pega os brinquedos que levou para lá e se senta um pouco para brincar, se estiver sem paciente. Ela achou que era por isso que elas levavam as crianças, porque realmente tem uns brinquedos muito legais aos quais, infelizmente, essas crianças não têm acesso. Até que ontem, uma professora levou a filha, que ela ainda não tinha conhecido, até sua sala. 

Fernanda se sentou, brincou, e depois a professora pediu para tirar uma foto das duas. A menina de seis anos, linda, esperta e muito inteligente, cochichou algo no ouvido da mãe e a mãe disse que ela queria abraçá-la antes de ir embora. Elas se abraçaram e a menina começou a chorar. Ela ficou sem entender, então a mãe explicou: "Ela está emocionada porque nunca abraçou um branco". 





Ela ficou sem reação e chorou depois que elas se foram. Como não ficar extremamente impactada com essa informação? Com uma criança se emocionar por abraçar uma pessoa branca? Naquele momento, ela entendeu que há algo coletivo que ela precisa romper. As crianças querem ir até a sala dela, porque podem tocá-la, tocar seu cabelo. Elas crescem entendendo que branco é que é bonito, que é legal. Veem os brancos como uma entidade. Como pessoas superiores. Resquícios da exploração, da colonização, da escravização.

O Gabão ainda é um país completamente dependente da França, os cargos mais altos são na sua maioria ocupados por estrangeiros brancos e quando um gabonês e um estrangeiro têm o mesmo cargo, o salário do estrangeiro é bem maior, mesmo na mesma função. Os salários da escola onde ela trabalha são baixíssimos, então, mesmo os profissionais são pessoas em situação de vulnerabilidade. E a questão é que para essa população é pior porque eles não dividem os espaços com gente branca. Herança brutal do colonialismo, a população original, negra, se sente inferior aos brancos.

A Fernanda, por estar sempre disponível, por ser acessível acabou virando atração. A questão é muito ampla e a linha muito tênue entre ela querer ajudá-los a terem essa consciência do racismo histórico e acabar ocupando um lugar que reforça essa questão de ter uma branca querendo ocupar um lugar de salvação. E como falar de racismo num lugar tão precário onde há tantas questões emergenciais de uma população miserável? 

Portugueses, ingleses e holandeses exploraram as riquezas do país, além de terem realizado o tráfico negreiro com a população nativa do Gabão. Em 1886, o país se tornou colônia francesa. A independência só foi obtida em 1960. Embora tenha a terceira maior renda per capita da África, a distribuição de renda é extremamente desigual, por isso, a maior parte da população é muito pobre.





A Fernanda é a única terapeuta ocupacional do país. A escola onde ela trabalha tem 130 crianças. Crianças com paralisia cerebral, com síndrome de Down, crianças autistas de todos os níveis de suporte, que não tem outro acompanhamento. A sensação é de estar enxugando gelo. São muitas demandas urgentes com impacto em sobrevida. São tantas urgências que não sobra tempo para fazer um trabalho não emergencial.

Tem barata, rato e outros bichos nas salas de aula. Bichos que circulam entre as crianças. É tudo tão precário que fica difícil descrever. Praticamente, não há brinquedos, e os poucos que têm são de materiais recicláveis. Não tem papel higiênico, não tem álcool, ela leva essas coisas de casa. As pessoas estão acostumadas com os ratos transitando entre elas.

As demonstrações de afeto são muito diferentes das que estamos acostumados aqui no Brasil, mas é mesmo difícil demonstrar afeto quando a vida é tão dura. O que ela pode fazer no momento é dar esse afeto que falta. Acreditar no poder transformador do carinho, do abraço, do elogio. Quando ela chega para trabalhar, passa por todas as salas para desejar um bom dia, dar beijos e abraços, mesmo se sentindo pequena e impotente. 

Ela é uma gotinha no oceano, mas uma gotinha é capaz de contagiar outras. Quando a gente sente que não tem nada a oferecer, a gente oferece amor, e através do poder do amor, acreditamos que um dia as crianças de lá não chorem de emoção ao abraçar uma pessoa branca, porque elas saberão que valem muito.