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Estado de Minas CARLOS STARLING

2020, o ano em que tudo parou, conta muito em nossa existência

Parar quase tudo e ficar em casa, relacionando com o mundo através do computador, seria isto para ser esquecido? Claro que não!


(foto: Pixabay)
(foto: Pixabay)

Há poucos dias, recebi uma mensagem no mínimo curiosa do Bráulio, meu amigo e estatístico com o qual trabalho há décadas: Carlos, decidi não incluir o ano de 2020 na minha idade. Eu não usei! 

Fiquei por alguns minutos matutando sobre a drástica decisão do amigo. Será que este ano, de fato é para ser ou não ser esquecido? Se ele analisa com tanto carinho e sofisticação metodológica os dados complexos dos hospitais onde atuamos, alguma razão matemática deveria ter. 

Parar quase tudo e ficar em casa, relacionando com o mundo através do computador, seria isto para ser esquecido? Claro que não! Arranjamos um novo jeito de nos comunicarmos, sem a necessidade de perder tanto tempo no trânsito, respirando fumaça e levando fechadas de motoristas mal-educados. Saudade nenhuma disto!
 
E do aeroporto, alguém sente saudade? Eu, nem um pouco. Minha teoria é que se você nunca perdeu um voo é porque está perdendo muito tempo em aeroportos.

Chego quase sempre correndo, todos os alarmes apitam na inspeção. É nesta hora que excomungo o 11 de setembro. Este sim, um dia para ser esquecido.

Sou, geralmente, o último a entrar na cabine sob o olhar de recriminação do primeiro ao último passageiro. O desafio seguinte é colocar a mala no bagageiro. Tudo cheio, vai ter que despachar! Se nesta hora você tossir ou espirrar, vai certamente viajar junto com a própria mala...

Além de tudo, reuniões on-line não têm turbulência. No máximo interferência do seu filho, que passa atrás da câmera e dá tchau para todos e pede para limpá-lo. Nada constrangedor. Pelo contrário, dá um ar de pai moderno que participa da criação dos filhos e faz tarefas domésticas as mais diversas. Quem nunca limpou uma criança não pode ser muito confiável.

Afinal, esse tipo de constrangimento ocorre até mesmo em ambientes palacianos e nas reuniões mais formais entre empresários. Em recente reunião on-line com o mais seleto grupo de empresários paulistas, o próprio presidente da República flagrou um peladão no quadradinho inferior do vídeo.

“Ô, Paulo[Skaf], tem um colega aí no último quadradinho que tá, saiu fora, tá ok?”

O Paulo Guedes emendou..."tem um peladão aí, fazendo isolamento social peladão em casa. O cara foi ficando com calor com a conversa e resolveu toma,r um banho frio...”
O presidente completou: "Infelizmente nós vimos tudo”.

Mas, o presidente não deveria ter usado o adverbio “infelizmente”. Afinal, transparência é o que ele sempre apregoou em seu governo. Mais transparente do que isso o empresariado brasileiro não poderia ser. Por mais terrível que fosse a cena do indivíduo peladão, era transparência nua e crua!

Já em outra reunião, bem mais turbulenta, com a maior concentração de palavrões por metro quadrado do Planalto e constrangedora para toda a nação, obtivemos uma nova apresentação clinica de raiva – a forma crônica e transmissível entre humanos.

Conforme me chamou atenção o meu terno e eterno professor de clínica médica, Leonardo Diniz, “tive que fazer uma profunda revisão de conceito: sempre estive convencido de que a doença raiva fosse rapidamente e universalmente letal. Depois de assistir a algumas intervenções vociferantes no vídeo exibido, me permito reconhecer uma forma crônica muito ativa da doença. Continua, porém, o conceito da transmissibilidade”. 

Felizmente, esta nova forma de apresentação tem vacina. Educação, cultura, ciência e consciência são armas poderosas, particularmente, na hora de digitar na maquininha que decide o rumo de nossas vidas.

Viagens da esquerda para a direita sem escala, podem ser turbulentas demais e com muitos palavrões e Ave- Marias.
Apesar desses pequenos percalços, ainda prefiro a videoconferência a aeroportos.

Talvez entrar e sair de casa seja algo que complicou muito nossa vida. Há alguns dias, um repórter me ligou perguntando sobre qual seria a maneira segura de entrar em casa. Preparando-me para dar a inusitada entrevista, comecei a listar os passos necessários para um adentramento seguro no domicílio.

Como a sequencia estava ficando interminável, resolvi fazer uma pesquisa bibliográfica na literatura e pedir sugestão aos colegas do nosso grupo da SBI - Sociedade Brasileira de Infectologia. A pesquisa bibliográfica foi tempo perdido, nada de sistemático.

Porém, a resposta do grupo da SBI foi imediata. Veio através de um texto colocado sem autoria em nosso grupo de ZAP extraoficial:

- Pegue a correspondência. 
- Espere o elevador chegar e veja se não tem ninguém. 
- Passe álcool nos botões do elevador. 
- Suba e vá até sua porta. 
- Tire a máscara. 
- Desembace os óculos. 
- Faça massagem nas orelhas pra voltarem ao lugar.  
- Passe álcool nas orelhas e nas mãos.
- Passe álcool nos óculos. 
- Tire o sapato. 
- Abra a porta. 
- Passe álcool na sola do sapato. 
- Não deixe a porra do gato sair no corredor. 
- Ponha a correspondência na mesa.
- Pegue o gato que saiu. 
- Passe álcool nas patas do infeliz. 
- Passe álcool nas meias porque você correu atrás do gato no corredor. 
- Tire as meias. 
- Tire a roupa. 
- Não, pô, só quando você estiver dentro de casa. 
- Passe álcool no corpo. 
- Passe álcool na roupa. 
- Passe álcool no chão aonde você deixou a roupa. 
- Passe álcool na correspondência. 
- Passe álcool na mesa aonde você colocou a correspondência. 
- Procure o gato. 
- Putaqueopariu. Vá pegar de novo o gato no corredor. 
- Espere!!!! Coloque a roupa antes. Agora vai. 
- Pegue o gato e passe álcool nas patas dele. 
- Jogue a porra do gato para dentro do apartamento. 
- Passe álcool na sola dos pés. 
- Passe álcool na maçaneta do lado de fora. 
- Passe álcool na maçaneta do lado de dentro. 
- Passe álcool no molho de chaves. 
- Passe álcool na sua carteira. 
- Passe álcool no RG. 
- Passe álcool no cartão da C&A. 
- Passe álcool nas moedas. 
- Passe álcool nas notas. 
- Passe álcool nos cartões de crédito. Até nos vencidos que você guarda sabe-se lá porquê. 
- Passe álcool na sua CNH. 
- Passe álcool no vidro de álcool. 
- Passe álcool nas mãos. 
- Cadê a porra do gato?

Dado a precisão dos relatos, fui atrás do cientista que descreveu este complexo protocolo. Para minha surpresa, encontrei a poetisa Milena Medeiros, uma paulistana que tem um charmoso site, chamado Alma de Poeta. Tentei contato com autora para saber se ela havia passado acidentalmente pelo Planalto, mas não a encontrei.

Tenho por mim que alguns “termos” utilizados sejam mera licença poética e não contaminação pelo vírus letal da raiva, que agora sabemos ser “doença crônica”.

Imagino que a dificuldade para entrar em casa seja o reflexo do amor pela própria vida, ou pela vida do gato – que tem sete a mais que nós, ou de alguém muito especial que tenha mais de 60 anos e pequenas macacoas que o vírus pode não perdoar.

Como relatou Milena, de fato, algumas coisas ficaram estranhas e complexas em 2020. Nem por isto, é motivo para que este ano não seja contado em nossa existência. O Bráulio, pela primeira vez, estava estatisticamente equivocado. Os resíduos matemáticos de 2020 são importantes e farão toda diferença no futuro. Tempos de chumbo e vírus jamais podem ser esquecidos.

Querem saber?! Cancelei a entrevista.  

Se não tenho habilidade para entrar em minha própria casa, este é um bom motivo para não sair dela, particularmente em tempos de uma nova pandemia e velhas doenças crônicas que voltam a ameaçar a nossa capenga saúde democrática.


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