Jornal Estado de Minas

CARLOS STARLING

Pandemia não é carta branca para se violar princípios éticos e científicos

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Tempos difíceis esses. Se já não bastasse o ineditismo do vírus e da pandemia, agora temos que lidar com os ilusionistas. 

Ontem recebi uma mensagem de um grande amigo me solicitando uma receita de Ivermectina para ele e a esposa. Ele definiu a posologia e o número de comprimidos a serem formulados. Pediu que eu prescrevesse uma quantidade maior para fornecer também aos seus funcionários. Por se tratar de um lombrigueiro, mal faria apenas para as lombrigas.





Por se tratar de uma daquelas pessoas pelas quais você tem o maior apreço, carinho e respeito, como dizer não?! Dizendo não! Exatamente por todo apreço que lhe tenho, não posso colocá-lo em risco e àqueles pelos quais você ama e quer tão bem. 

Consciência e juramento hipocrático podem contrariar um amigo, mas prefiro contraria-lo do que perdê-lo definitivamente para o barqueiro, em função dos efeitos colaterais de uma droga.

É comum em nossa prática médica este tipo de situação, que vez por outra, nos constrange ao extremo. Quanto mais próximas são as relações, mais frequentes são as solicitações. É o seu sobrinho querido, que lhe pede uma receita para a namorada do irmão do amigo da tia da avó do vizinho dele. Um simples Rivotril! Não custa nada!
 
Sim, custa! Custa muito! Pode me custar o CRM pelo qual lutei boa parte da minha vida. Porém, mais caro do que isto, é a consciência do prescritor.

Não faz muito tempo, que as famílias tradicionais faziam questão de ter um filho médico e um padre como forma de garantia e segurança na perenidade e na eternidade.

Colegas dermatologistas já me confessaram terem sido forçados a ver manchinhas na avó da namorada em banheiro de salão de festas. Claro, por uma namorada nova, dependendo da situação, até valeria o sacrifício e constrangimento. Fico imaginando os proctologistas com a hemorroida do sogro... 





Bem antes desta epidemia, já existiam estudos que mostravam que os infectologistas, depois dos dermatologistas, eram os especialistas mais submetidos a consultas informais pelos seus próprios colegas. A famosa consulta de corredor, atualmente substituída pelo WhatsApp. Com a chegada do corona, superamos de longe os dermatologistas.

Nesta epidemia, Hipócrates tem sido confundido com hipócrita

Não faltam vendedores de sonhos para uma população desesperada e havida por um milagre da ciência que lhe restaure o paraíso perdido. Mesmo que o paraíso seja poluído, corrido, corrupto, repleto de esgoto correndo pela calçada e com bala perdida por todo lado. 
Neste contexto, os vendedores de sonhos travestidos e maquiados de cientistas e salvadores da Pátria Amada Brasil, aparecem com a solução perfeita tirada da cartola da pseudociência.

Interessante, a cada hora é um coelho diferente. De vez em quando, o coelho cataléptico ressurge das cinzas com uma nova roupagem e missão. Tudo bem se o coelho fosse inócuo. Mas, não é!

O coelho mata de várias maneiras. Mata pelos seus efeitos colaterais diretos, pela falsa ilusão de segurança e pelo desvio das medidas reais de proteção das pessoas. 




 
Ao exalar a cortina de fumaça, os ilusionistas atropelam os princípios básicos que norteiam as condutas médicas e exaltam o xamanismo.
 
Pandemia não é carta branca para se violar princípios éticos e científicos

O problema mais sério do momento que vivemos no Brasil é que o ilusionismo é oficial. Promovendo tratamentos que se mostraram ineficazes, ou ainda em estudos clínicos, o governo e seus fiéis seguidores, expõem a população ao vírus como se o problema tivesse sido resolvido. 

Além de terapêuticas fakes que desaparecem das prateleiras das farmácias do dia para noite, acena-se com vacinas em desenvolvimento como se elas já estivessem prontas e disponíveis para adentrar no músculo deltoide de cada cidadão deste planeta.

Com isto, banaliza-se o conhecimento científico e a segurança com que estes fármacos são produzidos, abrindo espaço para os terraplanistas e anti-vacinólogos espalharem suas teorias. 

Já não sabendo mais em quem confiar, vale o cada um por si!
 
Neste contexto, meu amigo, vou lhe contrariar. Não lhe darei a receita deste medicamento, originalmente utilizado em bovinos e equinos, cuja dose e eficácia para tratar COVID-19, jamais foi definida para humanos. Eu correria o risco de lhe dar uma dose cavalar e perder a oportunidade de abraçá-lo novamente. Pelo apreço que lhe tenho, peço-lhe encarecidamente que fique em casa, saia somente com máscara para o absolutamente necessário. Fuja de qualquer aglomeração, particularmente daquelas frequentadas pelos ilusionistas de plantão do planalto central.





Tempos difíceis passam, mas demora né?!
 
Informe da Sociedade Brasileira de Infectologia
No dia 30 de junho, a Sociedade Brasileira de Infectologia publicou documento informando que "nos últimos dias, muito tem se divulgado nas redes sociais a respeito do uso de medicamentos para a COVID-19. Várias destas divulgações que circulam nas mídias sociais são inadequadas, sem evidência científica e desinformam o público".

Por isso, a entidade decidiu "fazer esclarecimentos sobre os diferentes tratamentos farmacológicos já avaliados até a presente data ou em pesquisa clínica.

1. Cloroquina/hidroxicloroquina:
Até o momento, os principais estudos clínicos, que são os randomizados com grupo controle, não demonstraram benefício do uso da cloroquina, nem da hidroxicloroquina no tratamento de pacientes hospitalizados com COVID-19 grave. Efeitos colaterais foram relatados. Seu uso em profilaxia pós-exposição, até o momento, também não demonstrou benefício.
Seu uso no tratamento da COVID-19 nos primeiros dias de doença, em casos de COVID-19 leve e moderada, está sendo avaliado e se aguardam os resultados.
A Organização Mundial da Saúde (OMS), a FDA (agência reguladora de medicamentos dos EUA), a Sociedade Americana de Infectologia (IDSA) e o Instituto Nacional de Saúde Norte-Americano (NIH) recentemente recomendaram que não seja usado cloroquina, nem hidroxicloroquina para pacientes com COVID-19, exceto em pesquisas clínicas, devido à falta de benefício comprovado e potencial de toxicidade. A Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) também segue e recomenda tais decisões.




De acordo com um relatório preliminar, cuja publicação é aguardada para os próximos dias, de um grande estudo randomizado com grupo controle (Estudo RECOVERY), coordenado pela Universidade de Oxford na Inglaterra, que avalia várias terapias em potencial para o COVID-19, a hidroxicloroquina não teve benefício para pacientes hospitalizados .
A associação da hidroxicloroquina com o antibiótico azitromicina foi descrita em estudos observacionais e não trouxe benefícios clínicos. Além disso, os dois medicamentos estão associados ao prolongamento do intervalo QTc no eletrocardiograma, que predispõe à arritmia cardíaca. O uso combinado pode potencializar esse efeito adverso, com eventual desfecho clínico fatal, especialmente em pacientes com doenças cardíacas, uma vez que a própria infecção pela COVID-19 pode causar dano ao órgão. Também se deve levar em consideração que antibióticos não têm indicação em infecções virais; seu uso indiscriminado e inadequado favorece a resistência bacteriana. O potencial benefício clínico do efeito “antiinflamatório ou imunomodulador¨ da azitromicina em pacientes com COVID-19 ainda está por ser comprovado.

2. Corticoides:
De acordo com um relatório preliminar, cuja publicação é aguardada para os próximos dias, de um grande estudo randomizado com grupo controle (Estudo RECOVERY), coordenado pela Universidade de Oxford na Inglaterra, que avalia várias terapias em potencial para o COVID-19, demonstrou que o corticoide dexametasona aumenta a sobrevida em pacientes com COVID-19 grave que necessitam de oxigênio suplementar ou ventilação mecânica, na dose de 6 mg/dia, com duração de até 10 dias.




Não há evidências de benefício do uso de corticoides para as formas leves ou moderadas da doença, nas quais não há indicação de oxigenioterapia, nem para prevenção. Logo, não devem ser usados nestas situações.
Pacientes com broncoespasmo, como em crise asmática, desencadeada por qualquer virose respiratória, incluindo a COVID-19, podem necessitar de corticoide. Tal necessidade, qual corticoide usar e por qual via administrá-lo devem ser avaliados individualmente pelo médico.
A automedicação e o uso preventivo de corticoides para COVID-19 não devem ser utilizados e podem causar efeitos colaterais.

3. Medicamentos antivirais:
A associação dos antirretrovirais lopinavir/ritonavir, usadas no passado por pessoas vivendo com HIV, foi avaliada em estudo randomizado com grupo controle, publicada em maio/2020, e não demonstrou benefício.





Um comunicado de imprensa da Universidade de Oxford, Inglaterra, divulgado ontem (29/junho/2020), demonstrou não haver benefício da associação lopinavir/ritonavir em pacientes hospitalizados com COVID-19, avaliados pelo estudo clínico RECOVERY. A SBI não recomenda seu uso em pacientes com COVID-19.

Resultados de estudo randomizado com grupo controle com placebo, demonstrou que o remdisivir demonstrou redução no tempo de recuperação em pacientes com formas moderadas e graves da COVID-19. Este medicamento ainda não tem registro no Brasil e seu uso foi autorizado no Brasil pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) somente para estudos clínicos.

4. Medicamentos antiparasitários:
Os antiparasitários ivermectina e nitazoxanida parecem ter atividade in vitro contra a SARS-CoV-2, porém ainda não há comprovação de eficácia in vivo, isto é, em seres humanos. Muitos dos medicamentos que demonstraram ação antiviral in vitro (no laboratório) não tiveram o mesmo benefício in vivo (em seres humanos). Só estudos clínicos permitirão definir seu benefício e segurança na COVID-19.





5. Tocilizumabe:
O uso do imunomodulador tocilizumabe foi descrito em séries de casos e estudos observacionais de pacientes com COVID-19 com alguns resultados positivos. Até o momento não há dados de ensaios clínicos randomizados com grupo controle que comprovem seu benefício e segurança. O Estudo RECOVERY, coordenado pela Universidade de Oxford na Inglaterra, que avalia várias terapias em potencial para o COVID-19, deverá divulgar os resultados dos pacientes que receberam tocilizumabe nos próximos dias.

6. Anticoagulação:
Pacientes hospitalizados com COVID-19 apresentam maior risco de complicações trombóticas, sendo indicado para a maioria deles, na ausência de contraindicação, o uso profilático de anticoagulantes, como heparina e seus derivados.
Não há indicação do uso de anticoagulante em dose terapêutica de rotina em pacientes hospitalizados com COVID-19, tampouco seu uso de rotina em pacientes em atendimento ambulatorial com as formas menos graves da doença.





7. Plasma convalescente:
O uso de plasma de pacientes recuperados de COVID-19 (plasma convalescente ou plasma hiperimune) pode proporcionar benefício na infecção pelo SARS-CoV-2, mas estudos clínicos randomizados com grupo controle que comprovem seu benefício e segurança estão em andamento. O Estudo RECOVERY, coordenado pela Universidade de Oxford na Inglaterra, que avalia várias terapias em potencial para o COVID-19, deverá divulgar os resultados dos pacientes que receberam plasma de convalescentes nos próximos dias.

8. Vitaminas e suplementos alimentares:
Não há comprovação de benefício do uso de vitaminas C ou D, nem de suplementos alimentares, como zinco, exceto em pacientes que apresentam hipovitaminose ou carência mineral. 
  
Especialistas brasileiros de serviços de ponta avaliarão opções de tratamento para COVID-19, em um estudo denominado 'Coalizão COVID Brasil', que incluirá cinco projetos de pesquisa: três avaliando pacientes hospitalizados em alas hospitalares e unidades de terapia intensiva, um avaliando seguimento um ano após alta hospitalar e um avaliando pacientes não hospitalizados com diagnóstico da doença.





Vivemos uma séria crise de saúde pública. Não podemos colocar em risco a saúde da população brasileira com orientações sem evidência científica. A avaliação do uso de qualquer medicamento fora de sua indicação aprovada (off-label) deve ser uma decisão individual do médico, analisando caso a caso e compartilhando os possíveis benefícios e riscos com o paciente, porém é vedado a publicidade sobre tal conduta. De acordo com o CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, no CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA, Resolução CFM n° 2.217, de 27 de setembro de 2018, modificada pelas Resoluções CFM nº 2.222/2018 e 2.226/2019, Capítulo XIII, sobre PUBLICIDADE MÉDICA: 'É vedado ao médico: Art. 113. Divulgar, fora do meio científico, processo de tratamento ou descoberta cujo valor ainda não esteja expressamente reconhecido cientificamente por órgão competente'.

Lembramos que no Brasil, a instituição que regulamenta o uso de novos medicamentos para todas as doenças e o uso de medicamentos antigos para novas doenças ou novas indicações, avaliando seu benefício e segurança, é a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), que tem feito um trabalho exemplar desde sua criação em 26 de janeiro de 1999 (Lei nº 9.782)."  






 
 
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