Jornal Estado de Minas

A EPIDEMIA E AS ESCOLAS

Meu primeiro dia de aula foi inesquecível

Conteúdo para Assinantes

Continue lendo o conteúdo para assinantes do Estado de Minas Digital no seu computador e smartphone.

Estado de Minas Digital

de R$ 9,90 por apenas

R$ 1,90

nos 2 primeiros meses

Utilizamos tecnologia e segurança do Google para fazer a assinatura.

Experimente 15 dias grátis


Meu primeiro dia de aula foi inesquecível. O uniforme estava impecável. 

Camisa de abotoar com um bolsinho do lado esquerdo e um cuidadoso bordado com as iniciais EST- Escola Santa Terezinha.



A merendeira ainda tinha o cheiro do couro. Foi feita pelo Sr. Olinto e escolhida por mim diretamente em seu curtume, que ficava perto da minha casa. Dentro dela, embrulhado num pano xadrez: queijo com goiabada. Ambos feitos pela minha avó.

Minha mãe foi comigo até a porta da escola, que ficava nos fundos da casa da Dona Zifinha Cendon, minha primeira professora.  Foi ela quem me ensinou a ler e escrever, o que, certamente, estou aprendendo até hoje. Ela usava um vestido claro com estampa floral que, com o tempo, percebi ser o seu eterno estilo.

A casa ficava na praça principal de Ibiá. Tinha um alpendre sóbrio do lado esquerdo por onde entrávamos para um barracão onde 5 carteiras, não muito novas, formavam 3 fileiras. Certamente, muita gente já havia passado por ali.



Ela me deu a mão e entramos para um mundo do qual nunca mais saí...

Da acolhedora Escola Santa Terezinha fui para o Grupo Escolar Dom José Gaspar, que também fica na Praça São Pedro, do outro lado da casa da Dona Zifinha.

Apesar dos 100 metros que separavam as duas escolas, tratava-se de um salto gigantesco para uma criança de 6 anos de idade. 

O grupo escolar, apesar de também acolhedor, tinha uma entrada imponente, corredores compridos, salas gigantescas e um pátio enorme onde centenas de crianças corriam e disputavam jogos que eu nunca tinha visto.

Ali, fui acolhido pela Dona Terezinha de Angelis, a diretora, e professoras experientes e extremamente cuidadosas.

Com o tempo, o espaço foi dominado e eu já me sentia inteiramente a vontade. 

Foi no grupo escolar que vivi as minhas primeiras experiências epidêmicas. O sarampo, a catapora e a caxumba eram praticamente inevitáveis. Com frequência, tinha que ficar em casa durante semanas, sem colocar o nariz para fora.



Alguns colegas nunca voltavam, e as suas carteiras ficavam vazias, por algum tempo...

As campanhas de vacinação eram o meu terror. A vacina contra varíola, feita com uma pistola pneumática, era tenebrosa. Ficávamos todos em fila indiana, rumo a uma sala de onde saiam todos com olhos esbugalhados e o braço marejando sangue. O tiro da pistola ficava cada vez mais perto. De vez em quando um fugia, enquanto outros desmaiavam.  Eu tinha que dar uma de forte. Era o filho de um dos médicos da cidade, se eu fraquejasse o caos se instalaria.

Na campanha contra o tétano eu não resisti. A agulha era enorme e a dor da primeira dose ainda estava fresca na minha memória. Quando dois na minha frente desmaiaram, eu não tive dúvida, fugi correndo pela rua. Atrás de mim veio a fila inteira. Fiquei escondido durante uma tarde no porão da minha casa, atrás de um feixe de lenha, cujos desenhos dos musgos incrustrados me lembro com detalhes.

Mas o mundo estava lá fora e, uma hora ou outra, eu teria que enfrentar o meu vexame. Meu pai me chamou no seu consultório, foi até a estante de livros e mostrou a foto de uma pessoa estendida e apoiada na cama apenas com o topo da cabeça e o calcanhar. O rosto do indivíduo estampava um sorriso estranho, que dava medo.



Ele me perguntou:

- Está vendo isto? Quer ficar assim? Se não quer, vai lá e toma aquela vacina. Ela serve para evitar que as pessoas fiquem assim...e morram.

Eu não tive duvida. Fui lá, dei uma de forte e tolerei o sofrimento. Mas a minha vergonha dessa fuga desesperada não passou até hoje. 
Há poucos dias, visitando um abatedouro de frangos, me lembrei muito da fila da vacina e da minha angústia escutando o tiro da pistola pneumática...

Quis o destino que eu virasse um infectologista. Defensor ferrenho das vacinas, como não poderia ser diferente. Afinal, a figura do livro meu pai foi pedagogicamente perfeita e inesquecível.  Nunca vi um caso de tétano na minha vida profissional. Certamente, a maioria das pessoas voltaram para a fila e enfrentaram o desafio da dor momentânea, assim como o tiro da pistola pneumática contra a varíola, a qual conheço apenas pelas figuras de livros. 

Segui como aluno de escolas públicas em mais de 95% da minha formação. Aprendi princípios de civilidade e educação, os quais considero fundamentais para a vida em comunidade.  

Quis o destino que eu fosse convidado pelo prefeito de Belo Horizonte a ajudá-lo a enfrentar a atual epidemia. Pois bem, o dilema do momento: voltar ou não às aulas? Qual a hora certa?

Esta é uma pergunta tão enigmática neste momento, quanto os musgos do feixe de lenha atrás do qual me escondi, ao fugir da dor da agulhada. 



As opções não permitem certezas, por mais que o pragmatismo militar tente ignorá-los.

Aliás, os militares parecem viver em outro mundo. Num mundo onde os civis são seres inferiores a perturbá-los. Me pergunto: uma escola pública, militar, que prega a desobediência a princípios sanitários e determinações judiciais do município onde está inserida pode ser chamada de escola?! O exemplo é o pior possível! Me parece tratar-se de um centro de formação de ditadores do futuro...

No mundo dos mortais civis, temos que tomar decisões baseadas em ciência, cuja certeza tem intervalos de incertezas.

A tabela abaixo apresenta opções em relação ao risco que queremos imputar aos nossos filhos (FIGURA 1). 

Trata-se de proposta feita pelo CDC de Atlanta no contexto do governo Trump, cujo negativismo ao longo da atual epidemia sempre foi evidente e muito parecido com os do nosso Messias.

Se optarmos por expor nossos filhos a uma condição de muito baixo risco, temos que aguardar até que o número de casos de infecção fique abaixo de 5 casos por 100.000 habitantes em 14 dias passados. Se quisermos expô-los a condições de alto e altíssimo risco optaremos por retornar as aulas entre 50 a 200 caos de infecção por 100.000 habitantes. Hoje, temos em Belo Horizonte, 160 casos por 100.000 habitantes.



Além desta condição epidemiológica, as escolas deveriam estar com as condições estruturais perfeitamente adequadas para implementar pelo menos 5 ações essenciais ao controle da epidemia, as quais encontram-se descritas na parte inferior da tabela.

Não sei se os coreanos prezam mais pela vida dos seus filhos que os americanos, mas o critério adotado por eles para o retorno às aulas presenciais foi de 5 casos de infecção por 1.000.000 habitantes. Ainda assim, vez por outra, tiverem que interromper as aulas devido à suspeita de alunos infectados.

Claro, não estamos na Coreia e nem nos EUA. Estamos no Brasil e temos que optar, à luz da nossa realidade social e estrutural, por qual tamanho do risco que queremos correr e imputar aos nossos filhos, a nós mesmos, aos avós de nossos filhos e à sociedade onde nos  inserimos.



Além dos aspectos epidemiológicos, geralmente atropelados pelo desejo afoito de retorno a uma normalidade perdida, existem detalhes de segurança que escapam ao olhar desatento dos negativistas fardados. O quadro clínico que acomete algumas crianças com COVID-19 é uma grave reação inflamatória, cujo tratamento exige o uso de imunoglobulinas. Entretanto, não dispomos no país de estoques suficientes nem mesmo para atender os pacientes fora do contexto epidêmico. 

Portanto, abrir escolas não é como abrir o botequim da esquina, onde vai quem quer, ou precisa para manter o seu sustento.

Decisão difícil, recheada de interesses econômicos e argumentos sociológicos, os quais permeiam a maioria das decisões relacionadas à flexibilização das medidas de contenção da epidemia. Tudo isto tendo como pano de fundo as eleições que se aproximam. 

Mas, como a minha casa não tem porão e a lenha já queima país afora, a minha opção seria de trabalhar com o parâmetro de menos de 5 casos de infecção por 100.000 habitantes e estoques de imunoglobulina suficientes para tratar as crianças que se infectarem e necessitarem desta medicação. Trata-se de uma meta distante?? Não. Perfeitamente alcançável.



Depende fundamentalmente da nossa atitude enquanto sociedade.
Se amamos nossos filhos e queremos o melhor para eles, temos que nos comportarmos como tal. Ou seja, evitarmos aglomerações, usarmos máscaras, ficarmos em casa, sairmos apenas para o que for essencial e adotarmos hábitos de higiene rigorosos. Afinal de contas, o vírus entende neste momento apenas estes argumentos. Desafiá-lo com postura bélica, independentemente da farda, é infrutífero e irresponsável. 

Quanto aos discursos políticos, prestem bem atenção, eles definirão o nosso destino nesta e em epidemias futuras. Herodes, Neros, negativistas e ilusionistas estão soltos por aí...