Começamos esta semana comemorando o Dia do Médico. Como eventualmente faço, reproduzirei aqui o texto que recebi, escrito pelo colega Francisco Cardoso - Vice-presidente ANMP (Associação Nacional dos Médicos Peritos).
Neste ano tão atípico, a reflexão proposta pelo colega é mais que pertinente. Espero que um dos legados desta epidemia para a categoria seja o resgate de uma autoestima, massacrada pela mercantilização do mercado da saúde no Brasil, assim como pelos interesses políticos espúrios.
A escolha do dia 18 de Outubro para homenagear os médicos no Brasil tem origem cristã. Nesta data, a Igreja Católica comemora a Dia da São Lucas, um santo que em vida foi médico e, por isso, é considerado o protetor dos médicos pelos católicos.
Porém, para enfrentar os desafios que temos pela frente, necessitaremos também rever nossa postura beatificada e termos atitudes menos pacifistas, o que não faltou ao colega Francisco Cardoso.
“Neste 18 de Outubro de 2020, preciso fazer um desabafo:
Médico nunca foi respeitado em seu local de trabalho. Nem mesmo nos melhores hospitais existe um respeito de fato. Existem os amigos dos gestores e o resto.
Médicos são tratados feito lixo pelos gestores (tanto faz se é público ou privado).
Médico sempre foi tratado pela sociedade brasileira como uma “garota de programa” de quinta categoria. Daquelas bem rampeiras que apanham do cafetão (gestor) e depois voltam para passar a camisa dele.
Médicos não são alvo de preocupação quanto à sua segurança. A regra geral é mandar o médico se f*****.
Quando argumentos óbvios de regras básicas de segurança pra os médicos são colocados à mesa, a resposta é: “mas vocês tem que se sacrificar.” Onde que está escrito que médico tem que se dar mal por negligência de empregador?
“Mau exemplo”, “Vagabundos”, “Desumanos”. “Mercenarios”. Esses são os adjetivos que a sociedade reserva para o médico que ousa, OUSA, reivindicar para si os mesmos direitos que qualquer outro trabalhador tem, exige e é tratado com normalidade pela mesma sociedade.
O médico que atende de graça e se arrebenta, aceita atender de graça, dá receita pra todo mundo sem questionar, não reclama das insalubres e inidôneas condições de trabalho, não se queixa de atraso de salário, esse sim, ganha aplausos da mídia e da sociedade. “Bom exemplo “, “Médico de verdade”, “Herói”, etc.
Herói, na medicina, é médico que aceita ser escravo e aceita morrer em serviço. Médico que se ferra, esse é o herói. Médico que quer ser tratado como um ser humano, isso não, esse não é herói não.
O Brasil não está acostumado a ver uma categoria médica organizada e lutando por respeito e dignidade no trabalho. Quando isso ocorre, causa repulsa não apenas na Administração Pública, mas também no serviço privado e suplementar. Os convênios médicos e operadoras ficam de olho nisso também.
Uma intensa mobilização é feita para desacreditar e acabar com a reputação de médicos que ousam pedir melhores condições de atendimento e remuneração. Inclusive com uso de médicos vendidos ao sistema, que são acionados para criticar os colegas.
Vai que outros grupos de médicos também passem a reivindicar melhores condições de trabalho. Vai que a moda pega.
Não tenham dúvidas: médico que for pego criticando colega que está em movimento por melhores condições, ou é mercenário a serviço de gestor ou é um completo alienado.
Pior é o colega que está trabalhando em péssimas condições e, ao invés de aplaudir os que se insurgem, resolve tacar pedra - pois se ele aceita trabalhar no lixo, porque o colega não aceita? - e se une aos mercenários da sociedade que querem nos manter como peça barata nessa engrenagem bilionária da saúde.
Recentemente os Peritos Médicos Federais fizeram um movimento: as agências do INSS estavam inabitáveis. Não dava para voltar ao atendimento presencial daquela forma (INSS fechou as portas em março, 6 meses antes). Todos os Peritos trabalharam de forma remota no período (3.5 milhões de processos analisados). Fomos massacrados pela sociedade e por diversos médicos. Como ousam? Quanta frescura.... E os coitados dos segurados ? (A vasta maioria estava recebendo antecipação pelo inss), dentre outras asneiras. A maior prova de que estávamos certos foi dada pelo próprio INSS: menos de 30% das agências abertas até hoje. Várias fechadas por surto de COVID. Governo editou MP para dar dinheiro para o INSS comprar EPI. Os críticos sumiram. O estrago na reputação, feito.
Agora, com a telemedicina, seremos transformados em operadores de telemarketing. Um salão cheio de médicos com microfone, em frente a uma tela, falando sobre coisas que não pode afirmar e prescrevendo sem exame físico, controlados por “chefes” administrativos que vão checar desde o número de horas trabalhadas até se estão prescrevendo ou pedindo exames fora dos “protocolos”.
Seremos reles operadores de midia, vigiados, monitorados, trabalhando em algo (teleconsulta) para o qual não há nenhum estudo científico que mostre ser eficaz, seguro ou equivalente a medicina tradicional. Sem controle do nosso ato medico. Peça barata.
Como disse um empresário recentemente “nós temos agora o controle da caneta do médico”.
É disso mesmo que se trata tudo isso: controle. Nossa profissão lida com algo muito caro, especializado e essencial para qualquer Estado (governo ou corporações): a Saúde humana.
Controlar nossa caneta é essencial. Para empunha-la, são décadas de estudos, os vestibulares mais difíceis. Muito além de qualquer outro curso.
Além de terem o controle da nossa caneta (protocolos, telemedicina, gestão, perda do respeito pelo médico) agora querem vulgarizar nosso conhecimento (massificação de faculdades, revalida light, retirada de prerrogativas da medicina pra outras profissões).
Tudo isto está em curso neste momento. Só há um jeito de reverter isso: resgatarmos o respeito da sociedade pela profissão médica.
Isso começa pelo respeito a nós mesmos, cada um de nós, em seu emprego. Não aceitar mais humilhações, calotes, insubordinações e invasões de outros profissionais, dar o melhor de nossa capacidade, agir com ética, zelo, atenção, perícia e prudência.
Mas só isso não basta: temos que abandonar esse personagem de “sacerdote” que nos imputaram (para justificar todas as explorações feitas) e nos reconhecer como trabalhadores. É essencial abandonar essa falsa vaidade de ser “superior” em um “pedestal de vestal” que só serve como desculpa para aceitarmos calados todas as agressões feitas a nós.
Nesse 18 de Outubro não quero palmas, quero respeito. Não somos heróis, não somos sacerdotes, somos médicos. Temos família, contas, vida e direitos. Chega de aceitarmos violações a esses direitos.
Minha sincera homenagem as centenas de médicos já mortos pela COVID-19 no Brasil é lutar, a cada dia, por um país melhor para todos, para a medicina e para a saúde brasileira”.
Francisco Cardoso - Vice-presidente ANMP.