A coluna de hoje conta com a visita ilustre do Dr. Romulo Paes-Sousa, meu colega de trincheira desde os tempos de residência médica e do enfrentamento da epidemia de Influenza de 2009.
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Recebi dele essa semana o artigo que reproduzo aqui na íntegra. Trata-se de uma análise brilhante dos motivos pelos quais fracassamos na condução da epidemia no Brasil. O seu "brevíssimo inventário" é, na realidade, uma síntese perfeita que explica os nossos 400 mil óbitos causados pela COVID-19 até agora no Brasil.
Convido-os a degustar o brilhantismo do Dr. Romulo.
Brevíssimo inventário dos fracassos no enfrentamento da Covid-19 no Brasil
Por Romulo Paes-Sousa*
Inventariar fracassos é sempre uma obra inacabada. Indivíduos e nações estão mais empenhados em elevar suas - muitas vezes pequenas - conquistas ao patamar das excepcionalidades, a momentos singulares de clarividência ou heroísmo, quando fulguram coragem, engenho e arte.
Já os retumbantes fracassos não têm lugar nos curricula vitae, aparecendo somente de forma acanhada na história das nações. Schwarcz e Starling (2020) chamam a atenção para o débil registro histórico da gripe espanhola no Brasil, em 1918 e 1919. Moraes e Barata (2005) alertam para o esforço da ditadura militar em esconder a epidemia da doença meningocócica, que atingiu o Brasil entre 1971 e 1976.
A negação da gravidade da doença e a inépcia no seu enfrentamento foram dominantes na gestão pública, diante tanto da gripe espanhola como da doença meningocócica. Contudo, muitos dos notáveis dirigentes da saúde pública nos dois períodos sequer perderam seus lugares nas placas toponímicas nas ruas e nas escolas médicas do Brasil.
Embora o fardo dos mais pobres tenha sido mais pesado, não faltam incorretas indicações de que as doenças e mortes distribuíam-se de forma democrática entre ricos e pobres. As epidemias são sempre cercadas de uma justificativa delimitada pela inevitabilidade da tragédia e pelo clamor do sacrifício alheio.
Um século depois, estamos novamente às voltas com uma arrasadora pandemia e, mais uma vez, diante do negacionismo quanto à gravidade da doença e de uma grande inépcia em seu manejo. No inventário dos erros que o Brasil tem cometido no enfrentamento da pandemia de COVID-19, se destacam quatro grandes oportunidades perdidas.
A primeira foi a incapacidade de se unir o país para o enfrentamento da pandemia. Na chegada do vírus ao Brasil (de fevereiro a abril de 2020), houve uma comoção inicial que sugeria a busca de um caminho comum para o enfrentamento da doença. Ainda que não chegasse a ser uma atitude homogênea no governo federal, era potente o bastante para sugerir que o Brasil poderia seguir o Reino Unido e Israel, que também viviam ambientes polarizados antes da pandemia, mas, após um período inicial de hesitação, passaram a buscar um maior entendimento político e técnico para combater a doença.
No Brasil, a dissonância inicial ganhou força, levando a trocas sucessivas do comando do Ministério da Saúde. A aliança de governadores se enfraqueceu e a pandemia foi municipalizada em um contexto de baixa cooperação entre os poderes e os três níveis de governo. E mesmo as principais entidades médicas do país sucumbiram aos fetiches dos medicamentos sem eficácia terapêutica e até ao combate às medidas quarentenárias.
A segunda oportunidade perdida foi não aproveitar os repasses realizados para o setor de saúde em todo o Brasil para enfrentamento dos déficits estruturais do Sistema Único de Saúde (SUS), como já descrito antes da pandemia (TEIXEIRA, 2014). Não se produziu uma estratégia sustentada para superar o subfinanciado sistema. Não se reduziu sua vulnerabilidade à ingerência política (muito pelo contrário). Não foi reduzida sua insuficiência de unidades de saúde, serviços, equipamento e pessoal.
Foram preservadas tanto sua dependência ao setor privado quanto a desigual distribuição de serviços de saúde no Brasil. Tampouco se enfrentaram os déficits de organização regional e dos diversos níveis de hierarquização. Manteve-se a baixa regulação dos subsistemas privado e de saúde indígena. A desorganizada intervenção restringiu-se às demandas emergentes, levando inclusive ao estabelecimento de hospitais de campanha de forma errática: ora os abrindo, ora os fechando para reabri-los meses depois.
A terceira perda corresponde ao grande investimento social e econômico de forma descolada das inciativas de prevenção da doença. O governo federal gastou, em 2020, R$ 524 bilhões para combater a pandemia - R$ 293,11 bilhões somente com o auxílio emergencial (BRASIL, 2021).
Trata-se de um investimento necessário e compatível à capacidade de endividamento do país, sendo que auditorias posteriores indicarão se a alocação foi executada de forma adequada. Contudo, o que está claro é que tal proteção financeira nunca esteve vinculada à necessidade de os indivíduos e famílias aderirem às medidas de prevenção à COVID-19.
O reforço na proteção social deveria ter sido concedido como o meio pelo qual os que já eram vulneráveis economicamente, ou assim se tornaram, pudessem aderir a medidas de restrição de mobilidade, protegendo das eventuais perdas quanto à empregabilidade e renda.
Webster (2020) observou, em uma ampla revisão sobre os determinantes da adesão às medidas quarentenárias em surtos de doenças infecciosas, que a proteção contra as consequências da perda de emprego e renda é um dos cinco fatores mais citados na literatura científica. Contudo, no Brasil, parte da narrativa política adotada fez exatamente o contrário, apresentando as medidas de reforço da proteção social como incentivo ao retorno presencial ao trabalho.
A quarta perda está associada à falta de uma estratégia abrangente e pragmática de aquisição de vacinas. No início do segundo semestre de 2020, já se sabia quais vacinas estariam disponíveis no mercado, ao final do ano. Perdeu-se a oportunidade de aquisição de pelo menos quatro das 15 vacinas que estão em uso neste momento no planeta.
O investimento em número limitado de vacinas e, mesmo assim, o fazendo de forma conflitiva, fez com que o Brasil iniciasse seu programa de vacinação de forma tardia e desorganizada. Isso tem feito com que o setor privado e alianças de governadores e de prefeitos buscassem uma solução paralela ao Programa Nacional de Imunização (PNI). Caso venham a ser bem-sucedidos nessa empreitada, desferirão um terrível golpe ao PNI, que já foi um modelo para o mundo.
Os mais ricos pensarão estar comprando a sua salvação diante de um governo federal débil. Como o Brasil é único e integrado, a imunização de parcelas privilegiadas pela herança ou pelo local de nascimento não impedirá que o vírus circule e produza variantes que sejam controláveis pelas vacinas disponíveis, invalidando em parte o esforço de imunização. Para o bem e para o mal, teremos que construir uma saída para todos.
O início de 2021 parece retirar o país da resignação e letargia. Uma nova comoção nos atinge diante do crescimento acelerado de internação por COVID-19, com taxas de ocupação de leitos de UTI COVID-19 para adultos superiores a 80% em mais de 18 estados e no Distrito Federal (FIOCRUZ, 2021).
A baixa cobertura vacinal, associada ao risco da circulação da variante P1, inicialmente identificada em Manaus, já cobra ajustes no conteúdo e quantidade de vacinas disponíveis. A busca tardia pela aquisição de novas vacinas nos coloca em uma posição desvantajosa frente à alta demanda global por estes produtos. A compra tardia custará caro ao Brasil.
A dimensão social também enfrenta o peso do grande desemprego - 13,6% segundo aferições da PNAD Contínua para o 3º trimestre de 2020 (IBGE, 2021). Novamente, governo federal e Congresso reagem aturdidamente ao chamado da hora. Não conseguem sequer entender que excepcionais investimentos são necessários, mas somente serão relevantes para debelar a crise se vierem associados a uma política consistente de promoção da saúde e prevenção da doença.
Outra vez, o cálculo político ganha prioridade diante do combate à doença. Parte do establishment brasileiro prefere apostar contra a gravidade da doença, contando que uma considerável parte dos eleitores não quer o “desconforto” do uso das máscaras, das medidas quarentenárias, do trabalho remoto e, sobretudo, da suspensão de várias atividades de lazer e trabalho. Uma aposta em que a sobrevivência política em um país polarizado se dá às custas do sofrimento, da invalidez e da morte de milhões de pessoas. São tempos de desconserto e desconsolo.
Em circunstâncias dominadas por um evento sanitário de porte, os fracassos do passado se projetam para o futuro. Doença e morte por COVID-19 prosseguirão no ano de 2021, com alteração na dinâmica demográfica (redução da expectativa de vida, aumento na mobilidade, alteração da fecundidade e da nupcialidade).
A recuperação econômica continuará sendo adiada. As doenças crônicas que foram negligenciadas contribuirão para o crescimento dos óbitos e incapacidades. As desigualdades na educação se aprofundaram e, portanto, comprometerão a inserção profissional das crianças de hoje no futuro mercado de trabalho.
A reputação internacional do Brasil como um país detentor de um sólido sistema de saúde está comprometida. As instituições nacionais seguirão mais enfraquecidas. A participação social na gestão do SUS adquirirá menor relevância. O país seguirá mais faccionado e conflagrado.
A grande pergunta passa a ser: qual será o legado da pandemia para o país? Uma primeira possível resposta seria o conhecimento. De fato, o conhecimento biomédico expandiu-se, permitindo a produção de muitas vacinas em um curto período. Também, aprofundou-se o conhecimento sobre a eficácia das medidas não farmacológicas no controle de doenças respiratórias.
Grandes tragédias costumam deixar legados institucionais. A gripe espanhola foi importante para a criação do Ministério dos Negócios da Educação e Saúde Pública, em 1930 (SCHWARCZ; STARLING, 2020). A COVID-19 já produziu impacto positivo na construção de duas novas fábricas de vacinas no Brasil, uma na Fiocruz e outra no Butantan.
Contudo, não se observa, nem no nível federal nem nas unidades federativas, a constituição de uma institucionalidade mais robusta para a área da saúde em relação à vigilância ou ao atendimento às doenças emergentes.
Dessa forma, o nosso risco maior é que um evento de tamanha proporção produza uma alteração muito pequena nos meios necessários para se produzir uma proteção adequada a eventos semelhantes que nos venham assolar no futuro.
*Sobre o autor:
Romulo Paes Sousa é médico, PhD em epidemiologia pela London School of Hygiene and Tropical Medicine, investigador sênior da Fiocruz Minas e coordenador do Grupo de Pesquisa em Sistemas de Saúde e Proteção Social.
Endereço para correspondência: Instituto René Rachou - Fiocruz Minas Rua Uberaba, 780, sala 5C (subsolo), Bairro Barro Preto 30180-080 - Belo Horizonte-MG, Brasil