O sprint na reta da Igrejinha da Pampulha era o ponto alto do nosso giro da lagoa há quase 20 anos. Saindo da rotatória do Mineirinho, o clima no pelotão já ficava tenso e a aceleração era explosiva, 50 metros adiante. Disputávamos chegar na frente em uma linha imaginária, para ganhar absolutamente nada.
Foi nesse exato momento que meu pé escapou do pedal e voei até aterrissar como uma jaca no chão. Jaca amassada por dezenas de ciclistas que se amontoaram sobre mim.
Capacete partido, óculos com lente enterrada no supercílio e obnubilado, realmente só me dei conta de onde estava, dentro de uma ambulância do Samu, ou Resgate, não me lembro mais qual foi.
Ao recobrar a consciência e já me sentindo seguro e acolhido, olhei para o médico que me assistia e disse: - Maravilha! Esta é a primeira vez que viajo dentro da minha própria ideia.
Percebi que ele não havia entendido nada ao comentar com a enfermeira: - O paciente está confuso, ligue oxigênio a 3 litros por minuto e avise a central que vai precisar de CTI.
Claro, ele não poderia imaginar o prazer que eu sentia em fazer aquela viagem, apesar das dores dos ferimentos. Afinal, uma frase como esta, dita por um ciclista que havia se arriscado a fazer um sprint no meio dos carros e, agora, politraumatizado, só poderia ser dita por alguém fora do seu juízo perfeito.
O que ele não sabia é que a história era outra, e eu a conhecia muito bem.
Tudo começou numa tarde de sábado, em meados dos anos 80, em Freiburg, Alemanha. Eu fazia um fellow no Serviço de Higiene Hospitalar sob a supervisão do professor Franz Daschner, o qual me havia sido apresentado por uma médica do Paraná, doutora Terezinha Carneiro Leão, sua fellow anterior.
Junto comigo estava uma enfermeira do Serviço de Transplantes de Medula do Hospital de Clínicas do Paraná, Cristiane Nubel. Nos preparávamos para assistir uma quarta de final de Copa do Mundo, aquecendo os tambores no 9° andar do Shewesterhaus para ver Brasil X França, quando um barulho vindo da rua nos chamou a atenção.
Lá fora uma chuva fina fez um motoqueiro cair, se arrastando no asfalto. Nosso instinto socorrista nos levou até a esquina, onde chegamos praticamente juntos da ambulância do serviço de urgência que atendia a região. Não existia telefone celular na época.
Fiquei maravilhado com a rapidez e agilidade com que o rapaz fora assistido. Lembrei do dia em que decidi me enveredar pelo estudo das infecções hospitalares. Foi durante um estágio no Hospital João XXIIII, nosso principal ponto de atendimento ao trauma de Belo Horizonte. Durante uma visita periódica a uma enfermaria neurológica, nos deparamos com seis pacientes tetraplégicos, os quais, basicamente, aguardavam o próximo surto de pseudomonas, como sentenciou nosso preceptor.
A pseudomonas é uma bactéria que geralmente infecta pacientes graves e extremamente vulneráveis. Naquele contexto, funcionavam com o anjo da morte. Aqueles seis pacientes eram sobreviventes de acidentes de trânsito atendidos de forma solidária por leigos tentando ajudar. Geralmente eram colocados em carros pequenos e improvisados da polícia, que simplesmente ligavam a sirene e rumavam para o HJXXIII.
O trauma ráqui-medular, a tetraplegia causada pelo trauma ou pelo transporte improvisado, encontravam infalivelmente a pseudomonas letal. Não me esqueço nunca do odor daquela enfermaria. Eu o defino como o cheiro da morte.
No dia seguinte, relatei ao doutor Daschner meu interesse em conhecer o serviço de atendimento de urgência da região, ligado à universidade. Ele prontamente atendeu ao meu pedido e na mesma tarde eu já estava dedicando parte do meu tempo conhecendo e acompanhando as equipes de atendimento de urgência. Por várias semanas, dividi meu tempo entre o Controle de Infecções e o Serviço de Urgências.
Ao retornar para o Brasil e às funções na Superintendência Hospitalar da Fundação Hospitalar de Minas Gerais (FHEMIG), apresentei a proposta de criação de algo semelhante ao que havia visto em Freiburg, tanto em relação ao controle de infecções, quanto ao atendimento de urgência.
Formamos uma equipe de trabalho e nos dirigimos ao Centro de Operações da Polícia Militar (COPOM), onde mapeamos todos os pontos onde a maioria dos acidentes aconteciam. Eu, Alzira, Paulo Roberto e Sandy Barreto discutimos demoradamente o planejamento deste possível serviço.
Passei dias escrevendo e resumindo o que havia visto em Freiburg e a experiência acumulada pela polícia militar num projeto de atendimento a urgências em Belo Horizonte e Região Metropolitana.
O projeto teve total aprovação do superintendente da FHEMIG e do secretário da saúde. Mas faltava a aprovação do governador. Preparei slides no Marcos Cine-foto, transparências, e rumamos para o Palácio da Liberdade para o veredicto do governador.
Lá chegando, depois de um belo chá de cadeira e milhares de cafezinhos, finalmente eu iria começar a tão esperada apresentação.
Mas o popular governador atendia telefones, secretarias e deputados, todos ao mesmo tempo e com um bom humor e energia surpreendentes. Eu não tinha a menor vez! Assim que eu começava a falar, era interrompido por um telefonema ou um deputado, que sem qualquer cerimônia adentrava o recinto. Meus slides, transparências e dados de custo-efetividade não tinham o menor impacto.
Ao perceber a inutilidade dos meus argumentos, apelei: - Governador, este projeto vai colocar mais de 25 ambulâncias circulando pela cidade e região metropolitana, com a sirene ligada e com o as laterais escritas Governo NC, o que o senhor acha? Ele não titubeou: - Projeto genial menino! Secretário, bota preço e vamos fazer para o estado inteiro.
Aos poucos fui vendo o meu sonho, compartilhado com meus colegas da FHEMIG, transformar-se em realidade. Primeiro sugiram veraneios cinzas circulando pela cidade e estacionadas em pontos críticos, os quais havíamos definido. Confesso que, a princípio, fiquei decepcionado. Mas, aprendi que, em gestão pública, com muita frequência, o bom é inimigo do ótimo.
Com o tempo, o projeto foi tomando corpo, até se transformar em algo muito próximo do que realmente eu vivenciei naquela tarde em Freiburg, quando, em companhia de franceses, vimos o Brasil perder nos pênaltis e não caminhar para a final. Brasileiro fora do Brasil fica ainda mais brasileiro durante jogos da nossa seleção. Trata-se, provavelmente, de orgulho compensatório de nosso complexo de inferioridade frente a países desenvolvidos.
Certamente, o colega que me atendeu no tombo de bicicleta na lagoa da Pampulha tinha todos os motivos do mundo para não entender a minha felicidade de, apesar de todo ralado e politraumatizado, viajar dentro da minha própria história.
Hoje, em plena epidemia, vendo o belíssimo e heroico trabalho feito pelas inúmeras unidades deste serviço, o som das sirenes, que me acordam no meio da noite, soam aos meus ouvidos como a Sonata ao Luar, de Beethoven.
Mas, o odor daquela enfermaria e o olhar daqueles seis pacientes, não há corona nesse mundo que consiga subtrair do meu olfato e da minha memória.
*Este texto é dedicado ao Dr. Franz Daschner, aos meus colegas da Superintendencia Hospitalar da FHEMIG que participaram dessa história e aos funcionários que atendem no SAMUR e RESGATE.