Sempre que o Galo está em alta, Roberto Drummond ressuscita nos áudios e vídeos em redes sociais. A célebre frase "numa tempestade, se houver uma camisa do atlético no varal, atleticano torce contra o vento."
Mato a saudade deste velho amigo que nos deixou há 19 anos, em 21 de junho de 2002, na véspera de um jogo histórico, Brasil X Inglaterra. Aquele, que Ronaldinho Gaúcho colocou uma bola improvável na gaveta do goleiro inglês. Fomos pentacampeões naquele ano. Ele não viu, mas previa.
Confesso que, quando passo pela Savassi, próximo à sua estátua, converso com ele e o convido para um café. Assento numa livraria e tenho certeza de tê-lo ao meu lado tomando um café. Afinal, fizemos isso inúmeras vezes.
Mas, o meu convívio com o autor de Hilda Furacão foi mais intenso durante as pesquisas de seu livro O cheiro de Deus, quando o ajudei na construção do enredo baseado em Belo Horizonte, a cidade sanatório.
A ideia era mostrar o impacto da tuberculose, uma epidemia secular, na vida de Belo Horizonte. A crença de que nossa altitude e clima ameno durante quase todo ano propiciava condições perfeitas para o tratamento da doença, fez com que vários sanatórios fossem abertos na Região Metropolitana de BH.
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O mágico e o realOs ipês do Olimpo Minha preceO criador de bodesLiberdade se conquista com inteligência, compromisso e maturidadeNós, vítimas de nós mesmosPara cá vieram médicos de todo o país, os quais ajudaram a construir as bases da medicina mineira. Alguns colegas dizem que a tuberculose é a mãe da medicina mineira, outro legado daquela epidemia.
Vieram também artistas, escritores e profissionais de todas as áreas, que nos ajudaram a construir o nosso jeito pão de queijo de ser.
Resgatar essa história romanceada foi o motivo pelo qual o Roberto me ligou para ajudá-lo. Fiquei fascinado com a ideia e partimos logo para a pesquisa de campo.
Fomos a vários hospitais, mas foi no Hospital da Baleia onde ele mais explorou os prontuários antigos, conversou com os funcionários mais velhos sobre suas vidas e os fatos que mais lhes marcaram a carreira. Uma verdadeira arqueologia poética.
Fazíamos essas incursões no labirinto das histórias registradas em velhos prontuários, os quais eram manuseados com luva e máscara pelo cuidadoso pesquisador. O seu temor era de que algum bacilo ancião, adormecido nos papeis e entre as letras das histórias clínicas, pudesse querer voltar à ativa e o infectasse.
Roberto não gostava de andar nas enfermarias. Certa feita, ao chegarmos ao final de um longo corredor o qual era percorrido por ele com a rapidez de um atleta de cem metros rasos, o percebi ofegante e perguntei se ele estava se sentindo bem. Ele me confessou que evitava respirar nos corredores. Quando não conseguia segurar o folego e respirava, já se sentia um tuberculoso.
O romance foi um mergulho poético em seus próprios temores e de várias gerações que lidaram com uma doença que desde o Egito antigo impacta a vida da humanidade. Epidemia que vai e volta e não nos larga há milênios, assim como o estigma que a permeia.
Mas, no momento daquela pesquisa, o que mais o emocionou foi quando descobriu que as famílias eram separadas à força pela tuberculose. Pais iam para o Eduardo de Menezes, mães para o Júlia Kubistchek e filhos para o Baleia. O mesmo acontecia com os pacientes com hanseníase.
Tudo isso acontecendo há menos de 50 anos. Lágrimas rolaram pela sua face branca e cobriram as sardas. Nesse dia, paramos no Botequim, um bar ao lado do prédio onde ele morava e conversamos demoradamente sobre o radicalismo, a intolerância, a ignorância e o impacto das ditaduras sobre nossas vidas.
Assim surgiu O cheiro de Deus.
A atual pandemia, particularmente os últimos acontecimentos no planeta, têm me feito recordar desses dias de pesquisa e das boas conversas que tivemos. Certamente, o radicalismo político religioso (quase talibânico) e a ameaça à nossa frágil democracia, mereceriam dele textos agudos e carregados de sentimento, vivência e arte.
O desespero do jovem atleta, Zaki Anwari, pertencente à seleção afegã de futebol, que caiu do avião decolando de Cabul, com certeza mereceria uma crônica do colega colunista deste mesmo jornal.
Zaki tinha apenas 19 anos. Quando nasceu, o Talibã já não estava mais no poder no Afeganistão. Sem conhecer a ditadura político religiosa do Talibã, preferiu arriscar-se em busca do seu sonho, agarrando-se à fuselagem de um avião em decolagem.
Vocês já pensaram na garra desse menino em campo?! Certamente, Roberto iria querer vê-lo jogando com a camisa do Galo. Afinal, desafiou o vento, a altura e a intolerância, com sua própria vida. Roberto cairia junto com Zaki, assim como eu caí. Eu veria, mais uma vez, as lágrimas cobrindo as sardas.
Não abrir mão de princípios democráticos e da liberdade de ir e vir. Repugnar todo e qualquer radicalismo é nossa obrigação para com nós mesmos, nossos filhos e netos.
Para evitar que eles um dia não precisem se agarrar na fuselagem de um avião em decolagem é que temos a responsabilidade de evitar que radicais tentem usurpar o poder e nos impor, novamente, uma ditadura. Hitler manda lembranças... A democracia pode ter mil defeitos e imperfeições, mas ainda não inventaram nada melhor.
Apesar de sua paixão pelo time do coração, Roberto não deixaria de dar um puxão de orelha na torcida pelo comportamento dessa semana na épica vitória contra o River. Dentro de campo um espetáculo. Nas arquibancadas e fora do estádio, uma lambança. Ignoraram a epidemia e o vírus, que coincidentemente é transmitido pelo ar, o mesmo que digladia com a camisa no varal.
Como uma pessoa que sentia o cheiro de Deus, certamente deve, de vez em quando, receber uma indulgência divina e voltar para assistir a um jogo do Galo. Há quem jura ter visto um vulto dando um trança-pé no atacante do Olímpia, evitando o gol que fatalmente tiraria o título da Libertadores do Atlético em 2013.
Alguns têm a certeza que foi um vulto com sardas.