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Amor de irmão

"Esse mês ele faria 85 anos. Adoraria rir da vida com ele. Impossível não chorar de rir por ele"


25/09/2021 06:00

(foto: Kylo/Unsplash)

Sinto o seu carinho à minha volta a todo momento. Não há um dia que não me lembre dele.

Humor até em enterros!

Viagens noite adentro.

Quantas vezes me fez dormir e acordar para os perigos da vida. Quantas vezes me acordou do outro lado do Atlântico com seu grito de guerra: - Sô bom nisso!!

E era!!

Ia do riso ao choro em segundos. E vice-versa. Tempo ruim era bom também.

Tinha numa mão a navalha do comentário felino e na outra uma flor.
Doce e amargo, mais doce que amargo.
Assim era Marneu!
Um novo mar de alegria.
Tempestade perfeita de contradições.

Elegância dos castelos e simplicidade dos peões.
Terno, gravata e botina.
Champanhe e traçado,
Charuto e cigarro de palha,
Extravagância e sensibilidade.

Zona e família
Preto e branco, Branco, preto, índio.
Todas as tribos eram a sua tribo.

Assim aprendi com ele.
O mundo é a nossa tribo.
O universo nosso espaço a ser compartilhado com as estrelas.

Dentro de mim ficou guardado o carinho de irmão, único e para sempre, meu irmão.
Nos deixou tão cedo! Filho de uma puta!

Como eu.

Tentei resumir acima o meu único irmão, quase pai, com o qual vim morar em Belo Horizonte em 1970.

Sério e alegre, mais alegre do que sério, tinha como sua marca registrada ser um contador de histórias em enterros.

Tentava amenizar a dor com o humor. Era o seu jeito peculiar de zombar da morte e valorizar o fato de estarmos vivos e podermos comemorar com a alegria de uma boa risada.

Eu tinha um certo temor de ficar perto dele nesses ambientes. A qualquer momento poderia sair um comentário ou uma história inusitada.

O riso inevitável certa vez me fez chorar. Fui consolado até pela viúva que achou que minhas lágrimas fossem pela perda do amigo.

Nesses momentos ele saía de fininho e ia rir sozinho num canto qualquer com a sensação de dever cumprido.

Uma dessas histórias foi sobre o enterro da Dona Maria Silota, a matriarca de uma comunidade quilombola próxima da fazenda do meu avô em Ibiá. Solícito, como sempre, se propôs a ir até a cidade comprar o caixão.

Na companhia do Treco, funcionário da fazenda, sanfoneiro divertido que também animava os enterros, rumaram para a cidade.

Na volta, o caixão vazio ficou sambando na carroceria da caminhonete.

Treco foi designado a manter o caixão estável. Como uma chuva fina e fria começava a cair, ele não teve dúvida, entrou na urna e lá ficou.

No caminho, Marneu deu carona para parentes da falecida que também iam para o enterro.

Alguns foram na boleia com ele e os outros foram na carroceria.

Com 10 minutos de viagem, o Treco colocou a mão para fora do caixão para ver se a chuva havia passado e perguntou: - Parou de chover aí, gente?! Não ficou um em cima da carroceria.

Ele jurava que o fato foi real. O Treco nunca negou.

Outra história de velório que ele gostava de repetir, com versões diferentes, era a do enterro da mãe de um colega e grande amigo dele em Lagoa Santa.

Tratava-se de uma senhora com cerca de 180 quilos, muito conhecida na cidade pela sua generosidade e benevolência.

Uma das várias pessoas que ela ajudava era o Zé do Berro, um morador de rua que vivia embriagado.

Como o próprio nome já o caracterizava, Zé do Berro tinha uma voz potente que o anunciava a quilômetros.

Ao se aproximar da casa dela, o prato de comida quentinho já o aguardava. Foi assim por anos.

Ele a chamava carinhosamente de Madinha.
Não precisa dizer que um dos mais tristes com a morte da Madinha foi o Zé do Berro.
Chorava e bebia.
Bebia e lamentava: - Num vai não, Madinha, num me deixa não!

A tristeza era comovente.

No momento do enterro ele não teve dúvida. Segurou numa alça do caixão e rumou para o cemitério da cidade.

Debaixo de uma chuva torrencial lá foi ele serpenteando pelas ruas da cidade puxando o cortejo, que com muito custo, chegou à beira do túmulo.

Para descer o caixão ele segurou nas duas pontas da corda dianteira, mas o terreno encharcado desbarrancou com a Madinha por cima e o Zé do Berro por baixo.

Ele, apavorado, disparou a sua garganta poderosa:- Me tira daqui cambada de fié- da-puta!! Num me leva não Madinha! Eu te amo Madinha, mais me deixa aqui!

Me tira daqui seus fios de uma puta!

Depois de muito custo, puxaram o caixão e ele saiu como um tiro de dentro do túmulo, todo sujo de barro e esbravejando:

- Pô Madinha, cê pesa hein! Coitado do Seu Salomäo que já tá debaixo da senhora. E ocês, seus froxo, vão tudo pras puta que os pariu!

E acabou-se o enterro.

Envelhecer é frequentar enterros e lágrimas. Numa dessas despedidas, resolvi visitar o túmulo dele e da minha mãe. De cabeça baixa procurando pelas suas marcas nessa terra, fui atacado subitamente por um casal de quero-quero que me bicaram no topo da careca.

Pareciam Kamikases a atacar um ser vivo num pântano de histórias perdidas no tempo.

Saí correndo daquele lugar espantado com a certeza de que não os encontraria ali. Histórias não se enterram em cemitérios, principalmente, se no final a gargalhada é o que seca a garganta.

Na canção gaúcha de Barbosa Lessa, ele conclui:

- Quero-quero, quero-quero
- Quero-quero o teu amor.

Qualquer semelhança com a realidade, coloquem na conta do Marneu. Ele não paga, nem eu.

Esse mês ele faria 85 anos.
Adoraria rir da vida com ele. Impossível não chorar de rir por ele.

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