Uma das cenas que não me saem da memória é a dos tufos de poeira que saíam da traseira dos carros nas estradas de terra entre Ibiá e Araxá.
Estradas de terra poeirentas e esburacadas.
A poeira vinha pela frente, por trás e penetrava nas frestas mal vedadas das portas. Os carros chegavam completamente empoeirados, e nós também.
Escrever e desenhar na poeira encrustada na lataria e vidros dos carros era uma diversão certa. Valia tudo, até desenhos e frases obscenas.
Outra diversão era lavar o carro e deixá-lo brilhando.
Melhor ainda era o bombom Sonho de Valsa pelo trabalho de lava-jato.
Assim, a poeira era fascínio infantil, diversão e um saboroso lucro. Tudo resolvido com água, sabão e imaginação.
Esta semana uma nuvem gigante de poeira cobriu cidades em diferentes regiões do Brasil.
Impossível não lembrar de cenas de filme de terror. A múmia do Saara veio morar no Brasil.
O planeta febril derrete geleiras, inunda cidades e faz um mundo cada vez mais seco. A poeira de hoje expõe a cegueira de nossa consciência ecológica.
O que vem pela frente é doença, miséria e guerras por recursos hídricos, básico para nossa sobrevivência.
Aço, frango, boi e nossos chuveiros secam nossas vidas e tornam o futuro um deserto sombrio.
Afundamos na lama de nossa própria irresponsabilidade ambiental. Somos uma tragédia esterilizante e autodestrutiva. Suicídio coletivo por inconsciência.
A poeira de hoje, nada tem haver com aquela da minha infância.
A cegueira do pó que invade nossas entranhas é a pá de cal no futuro coletivo.
Sepulcro cavado pelas nossas próprias mãos.
Sepulcro cavado pelas nossas próprias mãos.
Mais uma vez, nós, vítimas de nós mesmos.
Açoitamos a natureza com a volúpia de colonizadores extrativistas. A volta do chicote em nossas costas é inevitável. Gerações futuras, se houver futuro, saberão quem foram os lambões que destruíram a própria moradia.
A poeira que cega olhos e consciências deixa um rastro histórico marcado pela ganância e irresponsabilidade de toda uma geração.
O ar falta aos pulmões. A poeira obscurece o destino e os sonhos.
A feminina natureza sangra, assim como as meninas na menarca, cujo absorvente lhes foi sonegado pela insensibilidade de um troglodita travestido de Messias.