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Rua 20: todos temos a nossa rua e esquinas sem fim

Cantando e encantando, Yá-Yá brilhou em palcos do mundo. Muitos anos depois, entendi que toda cidade tem uma Rua 20


12/02/2022 06:00 - atualizado 12/02/2022 08:54

Tiradentes
Depois de muitos anos, entendi que toda cidade tem uma Rua 20. Todos nós temos a nossa rua e esquinas sem fim (foto: Kelsen Fernandes/Fotos Públicas)
Ninguém sabe onde começa ou termina a Rua 20 de Ibiá. Alguns acham que ela começa na cadeia e termina no cemitério. Outros dizem que ela começa na Santa Casa e, também, termina no cemitério. Os religiosos a definem como um caminho aberto da Praça São Pedro ao paraíso.

Todas essas definições estão teoricamente corretas. Porém, limitadas no tempo e espaço. Poderíamos definir a Rua 20 como o meio do caminho entre São Gotardo e Araxá, ou entre Belo Horizonte e Cuiabá. Não é bem assim. A rua 20 é uma reta que começa e termina no infinito. Trata-se de um hiato entre um nada e outro. Segmento de DNA que fez e faz parte de cada um de nós. Rua de um lugar qualquer. Rastro de jato no céu. Lá se vai a rua 20 cruzando o planeta e levando seus filhos, que um dia brincaram na enxurrada que descia lavando nossos dias.

Depois de muitos anos, entendi que toda cidade tem uma Rua 20. Todos nós temos a nossa rua e esquinas sem fim.

Algumas são mais íngremes que as outras, mas terminam sempre onde a rua 20 começa ou termina.

Morei no meio dela, numa casa com alpendre, jardim e muro bom de subir. Dali, vi a banda passar. Fiz parte da banda e toquei prato no ritmo do bumbo. Passei para a maraca, mas sucumbi à minha disritmia musical. A banda passou e eu fiquei para trás.

Não foi por falta de incentivo que não me dediquei à música. Meu pai comprou uma radiola fantástica. Minhas irmãs dançavam sobre tábuas do assoalho que balançavam no frenesi de um twist recém-nascido noutro canto do mundo. Não sei se os vírus aprenderam com a música, ou se a música aprendeu com os vírus, a cruzarem o planeta de forma tão rápida e contagiante. A música seleciona a espécie, ou a espécie seleciona a música?! Darwin não explica.

Foi pela Rua 20 que a vi partir em busca da música de sua vida. Ela foi embora deixando meus pais com os olhos cheios de lágrimas. Corri para o porão, onde eu escondia minha tristeza e meus medos. Só sai de lá quando o perfume dela não mais impregnava minhas mãos e seu carinho já era quase passado. Foi assim que me despedi pela primeira vez da minha Yá-Yá. Assim, eu aprendi a chamá-la. Neumar, o inverso de Marneu, meu irmão mais velho, era complicado demais para a sonoridade do ouvido de uma criança. Simplifiquei como ouvia, Yá-Yá. Quando ela nos deixou eu tinha pouco mais de 7 anos de idade. Daí para frente foram cartas e cartões postais, sempre com perfume e carinho. As tristezas e decepções, se houveram, ela nos sonegou com elegância. Minha mãe as lia várias vezes. Em voz alta e sussurros noturnos. Meu pai saia de perto para não sofrer. Eu queria apenas o perfume impregnado nas folhas, que me bastava para relembrar seu colo e carinho maternais.

A Rua 20 para ela virou uma larga autoban. Somente 50 anos depois voltou a ser Rua Ametista. Foi cantando e encantando que Yá-Yá brilhou em palcos do mundo.

Seu amor pela música a transformou numa professora exigente, dedicada e carinhosa com seus alunos. Muitos continuam distribuindo esse carinho nos quatro cantos desse planeta.

Ela me deixou no 4o ano primário e eu a reencontrei, no 4o ano de medicina, quando fui aprender alemão e fazer um estágio no Instituto de Medicina Tropical de Hamburgo. Foram 6 meses que mudaram o rumo da minha vida. Ela foi a maestrina da minha música. Apaixonei-me pela ópera e cada vez mais pela medicina. Por ela, conheci cantores históricos. Com alguns convivi nos bastidores da Ópera de Frankfurt, onde seu marido Vladimir de Kanel atuava. Foi com a ajuda dela que cheguei a Universidade de Freiburg e conheci o Professor Franz Daschner, que me acolheu e encaminhou pelo mundo da Infectologia e Epidemiologia Hospitalar. A rua 20 foi longe!

Há pouco mais de dois anos, quando completou 80 anos, ela voltou em definitivo para a Rua Ametista, destino derradeiro de sua Rua 20. Cheia de planos para continuar formando cantores, foi traída pela pandemia, que chegou no seu rastro dois meses depois. Ficou trancada por um ano. No ano seguinte, iniciou uma luta contra um câncer, que a levou há uma semana, motivo pelo qual lhes poupei dessa coluna no último fim de semana.

Tornou-se mais uma vítima indireta da pandemia, que impedindo um diagnóstico precoce de doenças tratáveis, as tornam letais em pouco tempo. Esses números não aparecem nas estatísticas diárias da COVID-19. Acompanhei os seus últimos e afinados suspiros, quando, mais uma vez, ela me deixou e seguiu pela Rua 20.

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