Meu sobrinho Lorenzo de 3 anos pediu seu pai para tirar a capinha do celular para que ele pudesse entrar tela adentro e sair aqui em casa para brincar com a Rafaela e Sophia.
Na imaginação fértil de uma criança, São Paulo e Belo Horizonte são separadas apenas por uma fina capinha de celular.
Eu me lembro de querer entrar nos carrinhos de brinquedo e sair dirigindo pelas estradas de terra que construía no quintal da minha casa.
Já quis entrar e estar nas praias lindas do atlas de geografia em tardes de colégio interno.
Degustar receitas e vinhos impossíveis. Completar jogadas de
gols do Pelé, que quase foram, mas não foram.
Essa é a magia do olhar. Nos transportar imediatamente para o desejo mais profundo do momento vivido.
Há pouco mais de 2 semanas, meus desejos se aguçaram. Tenho certeza que os da maioria dos que me leem também.
Minha vontade é entrar tela da TV adentro e arrancar as crianças Ucranianas e suas famílias do horror das bombas que caem sobre suas casas. Abraçá-las, aquece-las, dar-lhes nossos Belos Horizontes.
Bem mais que isso! Parar as bombas com as mãos. Sopra-las de volta para a matéria prima de onde nunca deveriam ter brotado.
Ao olhar as belas montanhas que nos cercam, impossível não me inquerir: - para onde foi o nosso minério?! Virou tanque de guerra? Chapa de submarino atômico?! Caça bombardeiro?!
Se foi esse o destino da catástrofe ecológica que nos rodeia, mais uma vez, devemos bater no peito e nos perguntarmos: - nossa culpa, nossa máxima culpa?!
Se deixarmos nosso Éden virar lama e se transformar em catástrofe alheia, somos duplamente responsáveis, omissos e cúmplices.
Para onde foram nossas montanhas?!!
Para as pontes destruídas? Para os carros incendiados?! Para os fuzis de onde saem balas que atravessam os corpos?! Vale a pena?
Enquanto assistirmos os horrores de uma guerra comendo pipoca em frente a TV, como se fosse ficção hollywoodiana, a tragédia somos nós.
Assim como um vírus e suas variantes cruzam o planeta em poucos dias, as balas e bombas também o farão, se não ajustarmos o foco do nosso olhar.
Caem bombas lá, crescem as filas nas bombas de gasolina aqui. Os mísseis que explodem lá, aumenta a fome no mundo inteiro. Ninguém fica imune à crueldade de uma guerra.
Acho estranho quando ouço a expressão “crime de guerra”. Soa como se a própria já não fosse um crime hediondo.
O absurdo do absurdo!
Meu viés infectológico capta as cenas inimagináveis da assistência num cenário caótico. A contaminação cirúrgica, as infecções nos recém-nascidos prematuros abrigados num porão, o antibiótico que acabou.
A vala comum onde vidas e sonhos são descartados.
Rogo para que o espírito indomável do nosso herói Ignaz Philip Semmelweis ainda esteja por aquelas bandas de lá e amenize o sofrimento das pessoas, assim como o fez em 1847, ao estabelecer que médicos lavassem as mãos antes de assistir às mulheres em trabalho de parto.
Consciência máxima é o significado simbólico mais profundo do ato de lavar as mãos. A magia do olhar disseca o mistério do símbolo.
Ao lavarmos as mãos para os horrores das muitas guerras presentes nos quatro cantos do mundo, abdicamos do direito de nos considerarmos humanos.
A dor na Síria, no Sudão, no Afeganistão, ou na Cidade de Deus é a mesma. Não importa onde, ou em quem. Se dói em gente, deveria doer em todos nós.
Comungando com a belíssima crônica do Ruy Castro dessa semana, o estupro é um só.
*Crônica dedicada a Afonso Borges, catalisador de arte e colecionador de amigos.