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Estado de Minas CARLOS STARLING

Xeque-mate

"Trata-se de algo bem mais grave. Psicopatia aliada a um projeto de ruptura democrática, pela qual lutamos para conseguir"


15/10/2022 06:00 - atualizado 15/10/2022 10:02

Tabuleiro de xadrez
(foto: Arquivo Pessoal)

Prezado leitor,
chegamos a um ponto onde não se trata mais de uma discussão entre direita X esquerda. Tudo o que temos vivido nessas eleições tem me levado a refletir sobre o complexo jogo de xadrez no qual estamos metidos.
Te adianto que não é jogo para principiantes.
Aprendi a jogar xadrez ainda quando criança. Meu pai jogava sempre com amigos e eu ficava ao seu lado observando e fumando passivamente. Acho que por volta dos seis anos comecei a dar palpites e até ganhar alguns jogos para ele.
Em pouco tempo ele já não ganhava mais de mim e eu batia todos os seus adversários. Virei uma atração circense na pequena Ibiá, no Triângulo Mineiro. O menino prodígio do xadrez, quase tão famoso quanto a mulher barbada e os contorcionistas dos circos que eu adorava.
Minha paixão pelo xadrez seguiu pela vida acadêmica, quando cheguei a disputar e ganhar alguns campeonatos universitários. Hoje me divirto jogando contra robôs e computadores. O tabuleiro do meu pai ainda está comigo até hoje. Fica sempre arrumado e pronto para o jogo.
Antecipar jogadas é o que o xadrez nos ensina. Uma mexida errada e o xeque-mate é inevitável. Pois é, chegamos no ponto da nossa conversa. O xeque-mate está muito bem desenhado pelo adversário. Temos uma jogada para salvá-lo e possivelmente reverter a catástrofe.
No fundo, não se trata de uma disputa entre direita e esquerda, ou de Lula X Bolsonaro. Trata-se de algo bem mais sutil e perigoso.
Mas, antes de prosseguir, gostaria de fazer um teste. Você é um robô? Se não for um robô, deve conhecer a origem dos termos esquerda e direita na história política.
Se você não for um dos milhares de robôs bolsonaristas infiltrados nos grupos de WhatsApp, mas simplesmente alguém que saiu do armário, entenderá claramente que bolsonarismo é algo diferente de direita e esquerda.
O bolsonarismo se assemelha bem mais a uma seita que atropela princípios e marcos civilizatórios.
A título de exemplo, o ex-ministro da educação Milton Ribeiro disparou uma arma no saguão de um aeroporto. Lembra?! Qual foi a consequência para ele? Nenhuma! Já imaginou se fosse um homem preto!?Ou um índio? Ou um gay!?
Dificilmente sairiam vivos do local.
Imagine se ficasse comprovado que a família desse mesmo indivíduo preto tivesse comprado 51 imóveis com dinheiro vivo. Imagina se uma das representantes de povos indígenas eleitas para a Câmara dos Deputados colocasse milicianos criminosos e madeireiros trabalhando no seu gabinete. O que diria a elite bolsonarista recém-eleita para os governos estaduais, Câmara e Senado!?
Temos 3% da população mundial e 11% das mortes por COVID-19. Dessas mortes, três em cada quatro seriam evitáveis. Sabe onde a maioria dessas pessoas morreU? Em municípios onde Bolsonaro teve mais votos. Ou seja, a brutalidade, ignorância e falta de empatia do Messias não poupou nem os seus seguidores.
Creio que você, que está lendo esse texto, não seja um robô, mas um ser vivo com sentimento. Lembra o que o senhor Presidente fazia no momento mais crítico da pandemia, enquanto assinávamos atestados de óbito nos hospitais lotados? Passeava de jet-ski, dizia não ser coveiro, imitava pessoas com insuficiência respiratória aguda e fazia motociata. Mas não o vimos visitando nenhum hospital. Você o viu!?
Estranho o fato de um ex-ministro que segue as regras da OMS não se eleger, enquanto um cúmplice de Bolsonoro na sonegação de vacinas à população brasileira e oxigênio para Manaus eleger-se por um estado com o qual não tinha qualquer vínculo eleitoral. Milagres da milícia?!
Da mesma forma preocupante, um ex-ministro, incendiário de florestas se eleger com mais votos que uma ex-ministra que sempre defendeu princípios ecológicos afinados com o que o planeta exige. A boiada passou e já vai longe.
Quando se tem um ministro da educação que fala que universidade não é para ser acessível a todos e que pobre tem que fazer curso técnico, eu arrepio. E a ministra da Mulher e Direitos Humanos, eleita senadora, que fala que menino veste azul e menina veste rosa. Além disso, mente em púlpito de templo religioso com claro objetivo eleitoreiro de enganar pessoas humildes para votar no falso Messias, o qual, despudoradamente, tentou pegar carona em inúmeros eventos religiosos país afora.
Quando a religião que se torna hegemônica tem acesso direto ao gabinete presidencial e a verbas para fins escusos, queima e destrói templos de outras religiões de matriz africana. Impossível não comparar esses fatos aos momentos mais tenebrosos da inquisição e perseguição nazista a ciganos e judeus.
Há 80 anos, houve também um alemão fortemente apoiado por forças religiosas reacionárias e pelo empresariado, com o lema "Alemanha acima de tudo". Arrebanhou votos das pessoas insatisfeitas com forças políticas da época, estrangeiros, desemprego e inflação.
De fato, levou a Alemanha a um período de prosperidade econômica, recordes de PIB, queda do desemprego e inflação. O empresariado oportunista da época, lucrou como nunca. A história nos conta o resto.
Que país é esse que estamos desenhando para o futuro próximo?
Tenho quatro filhas e me assusta o fato de viver numa sociedade onde homem vale mais que mulher, branco vale mais que preto, heterossexual vale mais que gay, magro vale mais que gordo, rico vale mais que pobre, europeu e americano valem mais que sul-americano e brasileiro de qualquer cor. Mais absurdo ainda é considerar o voto do brasileiro do Sul mais importante do que o do Nordeste.
Percebeu que não se trata apenas de direita e esquerda, ou Lula X Bolsonaro?
Trata-se de algo bem mais grave. Psicopatia aliada a um projeto de ruptura democrática, pela qual, lutamos para conseguir. Capitanias hereditárias com reinado perene do império da família Bolsonaro para os próximos 40 anos.
Afinal, tem pelo menos três príncipes engatilhados para assumirem o legado do rei. Sem contar os militares saudosistas dos tempos do "milagre brasileiro" e os oportunistas beneficiários de um orçamento secreto distribuído às vésperas de uma eleição para parasitas eternos do poder.
Talvez esses parasitas sejam a única arma biológica capaz de frear o apetite bolsonariano. Mas, certamente, ele não terá clemência nem com os aliados úteis de última hora.
O que está em risco nesse momento não é uma simples transição de poder da direita para a esquerda, ou vice-versa, mas um modelo de sociedade e civilização.
O que o bolsonarismo nos apresenta não é algo compatível com princípios humanísticos. Não me refiro aqui especificamente ao Bolsonaro, mas o que ele representa.
A história nos mostra que sociedades que trilharam esse caminho desaguaram no fascismo e no nazismo, ou ambos. É essa a direita que você aplaude? Se for, lamento, mas quem dá vivas a facínoras, facínora também o é, ou será. Em breve, certamente, também mais uma vítima da própria e equivocada opção.
Quando morei na Alemanha na década de 1980, não resisti à curiosidade e perguntei a alguns colegas mais próximos o motivo de tantas pessoas terem votado e levado Hitler ao poder. Em geral, me respondiam que, justamente quando era mais necessário defender a democracia, os alemães caíram na tentação fácil de um demagogo patético que fornecia uma falsa sensação de segurança e muito poucas propostas concretas de como lidar com os problemas da Alemanha em 1932.
Diferentemente do que se ouve hoje em dia, Hitler não era um gênio. Não passava de um charlatão oportunista que identificou e explorou uma profunda insegurança na sociedade alemã.
Hitler não chegou ao poder porque todos os alemães eram nazistas ou anti-semitas, mas porque muitas pessoas razoáveis fizeram vista grossa. O mal se estabeleceu na vida cotidiana porque as pessoas eram incapazes ou sem vontade de reconhecê-lo ou denunciá-lo, disseminando-se entre os alemães porque o povo estava disposto a minimizá-lo.
Antes de muitos perceberem o que a maquinaria fascista do partido governista estava fazendo, ele já não podia mais ser contido. Era tarde demais. Xeque-mate.
Qualquer semelhança com o momento atual no Brasil não é mera coincidência.

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