Tentando dominar a pequena aldeia Gaulesa, Cesar, o poderoso imperador Júlio Cesar, entende que a união entre os aldeões é o que lhes dava força contra os invasores.
Em Roma, nos corredores do Senado, começa-se a criticar a impotência do imperador frente aos irredutíveis gauleses. César tem de dominar rapidamente os detestáveis dissidentes que o desafiam. Para isso, decide enviar Tullius Venenus à aldeia com a missão de quebrar a forte união dos rebeldes gauleses e semear a discórdia entre eles.
Em pouco tempo, a vida dos aldeões está de ponta cabeça, e corre o rumor de que Asterix teria vendido aos romanos o segredo da poção mágica! Os gauleses viram-se uns contra os outros, e a "guerra psicológica" causa estragos. Será esse o fim da aldeia?
Esse é o 15º número da famosa criação de Albert Uderzo e René Goscinny, a primeira história das Aventuras de Asterix, O Gaulês, cujo primeiro número saiu em 1959. Impossível não fazer comparações com o momento atual que vivemos no Brasil.
A Cizânia se estabeleceu até no galinheiro das nossas casas. Galo e galinha já não se entendem, se é que algum dia se entenderam.
Catalisado pela fluidez das redes sociais a discórdia é geral. Famílias devastadas pela COVID-19, agora se veem completamente desunidas pela polarização política. Não me lembro, em toda minha vida ter visto tanta discórdia.
Nos grupos de WhatsApp e outras redes sociais, as discussões se tornaram acaloradas, onde o desejo de abafar a fala do "oponente" se torna uma obsessão.
Um comentário gera de imediato dez postagens. Uma fábrica de fake news e argumentos falaciosos postados por gente que até pouco tempo defendia de forma ardorosa tratamentos milagrosos contra a COVID-19 agora se arvoram a cientistas políticos.
Essa semana me peguei discutindo com minha sobrinha querida e colegas de turma, os quais não vejo há cerca de 40 anos.
Mas, qual a raiz de tudo isso? Onde está a porção mágica do druida Panoramix para nos dar consciência e gerar sabedoria e força para superar esse momento tão conturbado e repleto de incertezas?!
Foi debatendo o assunto com nosso assessor de comunicação da SBI (Sociedade Brasileira de Infectologia), Danilo Tovo, que recebi dele uma postagem extremamente interessante que traz luz à treva.
A postagem é assinada por Makely Oliveira Soares Gomes, mais conhecido como Makely Ka, um poeta, cantor, violonista, produtor cultural e compositor brasileiro. Brilhante revisão sobre o assunto que tanto nos atormenta, feita por alguém com extrema sensibilidade o qual lhes convido a conhecer nas suas redes sociais, Spotify, etc.
Reproduzo aqui, na íntegra, o texto que me foi encaminhado pelo Danilo.
"Por Makely Ka: ontem eu acompanhei uma discussão num grupo de WhatsApp com bolsonaristas. Eles realmente estão dominados por uma programação neolinguística poderosa. Qualquer argumento lógico-racional bate e volta. Para eles Bolsonaro está enfrentando a pandemia da melhor forma possível, os governadores e prefeitos é que estão atrapalhando. Para esse grupo de pessoas o presidente está tentando salvar o Brasil do colapso mas vem sendo perseguido pelos ministros do STF, pela justiça eleitoral, pela imprensa, pelo PT, pelos comunistas. É uma realidade paralela, um mundo distópico, um delírio coletivo profundo. Não adianta argumentar, eles agem como fanáticos. É muito próximo de um comportamento psicótico, onde prevalece a sensação de perseguição, de tormento mental, de paranoia delirante, de busca de culpados.
O professor da UERJ João Cezar de Castro Rocha tem falado sobre as técnicas de manipulação psíquica desenvolvidas pelo ideólogo da extrema-direita Olavo de Carvalho. No seu livro "Guerra Cultural e Retórica do Ódio" ele faz um escrutínio dessas técnicas, que possuem vasta literatura e foram aplicadas em diversos momentos da história em diferentes contextos. É fácil concluir que elas foram ampliadas com as ferramentas de comunicação em massa possibilitadas pelas novas tecnologias. Mas Olavo vem atuando no submundo do extremismo muito antes do advento dessa tecnologia, desde os anos 90, quando começou a arrebanhar seguidores e muito antes portanto das redes sociais na internet. Numa salada de referências que enreda clichês de filosofia, militarismo, anti-comunismo e doses cavalares de teorias conspiratórias as mais absurdas e inverossímeis, ele arrebanhou pacientemente um público crescente e fiel nas últimas duas décadas.
Há um livro inacabado do filósofo alemão Arthur Schopenhauer lançado pela Topbooks no Brasil chamado "Como Vencer um Debate Sem Ter Razão" que pode ser lido como uma chave de entendimento para o fenômeno olavo-bolsonarista. Essa edição de 2003 traz introdução, comentários e notas de ninguém menos que o autodenominado filósofo. A própria tradução é assinada por Olavo e por Daniela Caldas. Nessa obra o alemão propõe 38 estratagemas de dialética erística para vencer um debate em qualquer situação, mesmo estando errado. Erística vem de Eris, a deusa da discórdia. A entidade grega começa a atuar no momento em que se percebe que a tradução, supostamente feita a partir do original alemão - como o tradutor dá a entender na introdução - reproduz ipsis litteris a tradução para o espanhol realizada por Dionisio Garzón. Como aponta o professor de filosofia Tomás Troster, o ideólogo não teve escrúpulos em fazer uma tradução indireta sem dar crédito ao tradutor que verteu a obra do alemão para o espanhol. Mas a desfaçatez não termina aí. Nas notas e comentários ele não se furta de fazer auto-citações, indicando seus próprios livros como complementos de leitura e referência conceitual para o texto do alemão.
Os estratagemas da dialética erística consistem basicamente numa tentativa de confundir, cansar e vencer o oponente com tergiversações, inversões retóricas, divagações tautológicas e todo tipo de artimanha possível num debate, inclusive ataques pessoais. Mas isso não surgiu com Schopenhauer na Alemanha do final do século 19. Na Grécia antiga já havia quem usava a erística para vencer discussões. Eram os sofistas. Considerados inimigos dos filósofos, eram confrontados por estes que buscavam apontar as incoerências e inconsistências na argumentação dos sofistas.
Schopenhauer não chegou a publicar o livro em vida. É visível também o tom irônico dos estratagemas, provavelmente compilados mais como estudos de caso para serem aproveitados em outras obras. Nas traduções mais fiéis ao original é possível perceber até um certo escárnio do filósofo. Mas o brasileiro radicado nos EUA não tomou conhecimento da ironia e adotou os ensinamentos no seu próprio modus operandi, tanto na vida quanto nas redes. Com efeito, é possível reconhecer vários estratagemas tanto nos livros quanto nas postagens do velho guru. Atualmente não só os seus discípulos, mas todos os radicais - inclusive radicais não-bolsonarista - utilizam as mesmas técnicas nas discussões em redes sociais. A maioria certamente não faz ideia que está reproduzindo uma técnica de argumentação reciclada que possui, por baixo, mais de dois mil anos.
O esquema de manipulação dos grupos e das redes bolsonaristas operado atualmente pelo Gabinete do Ódio representa portanto a institucionalização do método desenvolvido pelo astrólogo da Virgínia. Conheço pessoas que participam e acompanham esses grupos bolsonarista há cinco ou seis anos. A maioria é mais velha, mas não só. Elas são bombardeadas diariamente com informações, a maioria falsa, mas também com mensagens de apoio e solidariedade. Há um sentimento de pertencimento, de união. Essas pessoas infelizmente não vamos conseguir trazer para o campo da razão e do bom senso.
É como se um chip tivesse sido implantado no córtex cerebral de forma tão profunda que não é mais possível removê-lo. Já faz parte da arquitetura cerebral desses indivíduos. Se você tira deles essa crença eles não conseguem mais se orientar, ficariam perdidos. Certamente, mesmo que a família Bolsonaro venha a ser condenada com provas robustas pelos vários crimes que estão sendo investigados, de peculato a lavagem de dinheiro, de liderança de organização criminosa a relações com a milícia, eles continuarão negando veementemente.
Diante dessa situação só nos resta evitar o debate infrutífero com essas pessoas e tentar focar de forma pragmática naqueles que ainda não foram abduzidos. Há muitos desses, em todos os lugares. Geralmente estão quietos, em dúvida, inseguros, questionando seu apoio. Não convém atacar esses indecisos, acusá-los por terem apertado o número 17 em 2018, responsabilizá-los pelo estado de calamidade que se instalou. Esses estão acordando de um pesadelo e precisam de acolhimento. São eles que vão nos ajudar a derrubar o residente no Palácio do Planalto, seja através de um impeachment como eu gostaria, seja através das urnas em 2022. Se estivermos vivos até lá."
Pois bem, as urnas estão logo ali, na próxima semana. Dependendo do resultado, pode ser que sejam aposentadas para sempre. Portanto, trate-a com carinho de quem poderá perder a chance de decidir o próprio destino.
Temo que precisaremos de muita porção mágica do druida Panoramix para trazer paz a nossa aldeia, que certamente nunca mais será a mesma. Catar os cacos das relações destroçadas e seguir sonhando com um Brasil lindo, ensolarado e mais justo.