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Estado de Minas ARTIGO

Feliz Natal

'Entre os participantes, tinha um indivíduo magro, franzino, olhos grandes, mãos compridas que lembravam as mãos de súplica das obras de Portinari da Igrejinha'


24/12/2022 06:00

Obra de Portinari
Igrejinha da Pampulha (foto: Ronaldo de Carvalho/Divulgação )
 
Sempre gostei dessa época do ano! As pessoas preocupadas com presentes, ceia de Natal, roupa de réveillon, viagem de férias, verão, sol, praia, família reunida. Seres humanos com sentimentos próximos do que se pode entender como humano. Tudo perfeito?!
 
Quase tudo! Alguma coisa, lá no fundo da alma, não está tão perfeita assim. Os semáforos vermelhos nos mostram, à cada esquina, coisas que nossos olhos não gostariam de ver.
 
A miséria, a desigualdade e o sofrimento alheio colocam espinhos nos travesseiros. Ou, pelo menos, deveriam colocar.

 
Pelas suas atitudes, o travesseiro da minha mãe era uma coroa de espinhos. Me lembro das inúmeras vezes que saímos distribuindo comida, roupas e toda sorte de doações que conseguíamos para os que residiam nos bairros mais pobres de Ibiá.
 
O olho dela brilhava a cada entrega. O seu coração chagásico dilatado de carinho batia no ritmo dos que recebiam a doação.
 
Meu pai, por outro lado, se desdobrava para conseguir doações para construir e manter a Santa Casa de Misericórdia de Ibiá. Foi lá que certamente me apaixonei pela assistência, em particular, pela medicina. Cresci alí, brincando nos corredores compridos com piso de cerâmica vermelha. 
 
A Santa Casa era quase uma extensão da minha casa. Acho que foi nessa época que aprendi, com as enfermeiras, a lavar as mãos. Principalmente antes de tomar o café com leite e bolacha Maria, carinhosamente servido pelas copeiras no refeitório, um dos meus lugares prediletos.
 
Lavar as mãos é símbolo de consciência, o que também se aprende em casa.
 
Nessa época do ano em particular dávamos e recebíamos presentes. 
 
Era comum recebermos frangos, leitão, frutas e guloseimas.
 
Não me esqueço do dia em que recebi de um senhor uma lata, tipicamente usada para colocar biscoito de polvilho. Ele me viu brincando na porta de casa e pediu: - Por favor, entregue para o seu pai. Ele vai gostar de ver o que tem dentro.
 
Minha mãe, curiosa e certa de que se tratava de biscoito de polvilho, abraçou a lata e puxou a tampa. Subiu um bodum nada parecido com o biscoito idealizado.
 
Lá dentro tinha uma enorme lombriga. Uma Taenia solium de vários metros, popularmente conhecida como lombriga do porco.
Troféu compartilhado por aquele senhor, pela competente intervenção terapêutica do meu pai. 
 
Presente comum nessa época era também o peru! A meninada juntava toda no quintal para ver o peru bêbado antes da degola fatal. Cena bem distante das gôndolas dos supermercados de hoje.
 
Aprendi ainda muito cedo o prazer da endorfina gerada pela doação.
 
Vício do bem que não é genético e se aprende em casa.
 
Doar é como comer pipoca, é só começar.
 
Bem mais tarde, já nos últimos anos do curso de medicina, fui para o internato rural em Jequitaí, norte de Minas. Fiquei morando junto com um colega (Peops) na enfermaria de um pequeno posto de saúde, vez por outra, compartilhada com um cadáver, vítima das constantes brigas políticas resolvidas a bala.
 
Foi nessa época que recebemos uma comitiva da Faculdade de Medicina para conhecer e acompanhar de perto a importância daquela experiência pedagógica. 
 
Entre os participantes, tinha um indivíduo magro, franzino, olhos grandes, mãos compridas que lembravam as mãos de súplica das obras de Portinari da Igrejinha da Pampulha.
 
Era um sujeito de fala mansa, pausada e firme. Quando falava o silêncio era total. A coerência de raciocínio, a delicadeza e os princípios humanísticos eram de arrepiar. Não me lembro do nome com o qual nos foi apresentado.
 
Seguindo a comitiva da Faculdade, fomos para Montes Claros e depois Teófilo Otonni, onde fizemos seminários com alunos, preceptores do internato, líderes comunitários e da igreja. 

Em todos as reuniões a fala final era daquele indivíduo misterioso que nenhum de nós conhecíamos. Sempre brilhante, simples e emocionante.
 
Em Teófilo Otonni, ao final da jornada, fomos tomar uma cerveja e comer carne de sol em um bar da Pampulhinha, parque de exposições da cidade. Entre uma cerveja e outra apareceu uma lua cheia maravilhosa e um violeiro regional de voz cristalina que mais tarde se tornaria meu amigo e parceiro em algumas musicas: Marcílio Menezes.
 
Subitamente, nosso conferencista e companheiro de jornada pediu o violão e cantou "O bêbado e a Equilibrista". Ao final, com os olhos marejados, revelou: -Essa música foi feita para mim. 
 
A princípio não entendemos, mas na sequência ficou claro. Aquele era o Betinho (Hebert de Souza), o irmão do Henfil saindo da clandestinidade imposta pela ditadura militar. 
 
No dia seguinte, o deixamos em Governador Valadares, de onde ele pegou um voo para o Rio, onde foi organizar o movimento Ação da Cidadania Contra a Fome a Miséria e Pela Vida.
 
Nunca mais o encontrei pessoalmente, mas nunca me esqueço desses dias compartilhados com um ser tão iluminado e brilhante. 
 
Nessa época do ano, quando nosso hemisfério fica mais próximo do sol e os princípios de cidadania  cutucam o coração das pessoas, me pergunto de onde brota a bondade. 
 
Não sei a resposta exata, mas,  certamente, a bondade tem pré requisitos:
Ausência de fome, berço e exemplo são fundamentais.
 
Feliz Natal! 

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