Quando nasci, Pelé tinha 17 anos e nos dava o primeiro título mundial. O rádio, nosso centenário divã, fazia os dribles viajarem da grama a nossa imaginação. O gol era de Pelé e nosso. Cada um tinha o seu próprio gol de Pelé.
A arte da locução de Waldir Amaral e Jorge Cury transformavam a realidade em delírio coletivo.
Na minha casa, em Ibiá, um grande rádio de válvulas ficava no meio da copa. O Repórter Esso nos visitava diariamente e os gols de Pelé, sempre que o Santos jogava.
Acho que antes de falar mamãe, aprendi a falar Pelé. Acho que foi minha primeira frase foi “Gol de Pelé”.
Aprendi a jogar bola na garagem da minha casa, com uma bola Pelé. Era uma bola de borracha marrom que vinha com a imagem do Rei dando uma bicicleta. Com frequência, a bola passava sobre o portão e caia no meio da rua, onde, acredito, Pelé driblava até os pneus dos carros e sobrevivia ilesa do outro lado da calçada.
A primeira vez que o vi jogando foi na tela do Cine Brasil de Ibiá. Dos filmes em cartaz, me lembro de poucos, Bem-Hur com certeza. Mas, me recordo de cada detalhe das jogadas e gols de Pelé em câmera lenta nas lentes poderosas do Canal 100.
Víamos o mundo pelo jornal que passava antes dos filmes, revistas impressas e coleção de figurinhas. O delay era de semanas a meses. O importante era confirmarmos o que já havíamos ouvido e sonhado. O fundamental era assistirmos o soco no ar.
Em nossas peladas na garagem, gol sem o soco no ar não valia nada.
O único VAR que tínhamos era o “var catar” a bola no mato.
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Certa vez, batendo uma pelada no campo que ficava na beira do Rio Misericórdia, corri pela esquerda e chutei da entrada da área. A bola bateu num montinho de estrume de vaca seco, enganou o goleiro e entrou no canto oposto.
Com bosta ou sem bosta, o gol valeu e foi classificado como uma literal cagada.
Alguns minutos depois, estranhamente o suposto estrume seco se moveu para uma moita na beirada do campo. Tratava-se na realidade, de uma baita Jararacuçu artilheiro que imediatamente foi apelidado de Pelé.
Para minha revolta, o gol foi invalidado, Pelé estava impedido. A cobra era cobra de verdade e ganhou clemência pelo apelido recebido. Afinal, quem se atreveria a matar a cobra Pelé?!
Pelé era celebridade e craque até no meu jogo de botão. Imbatível! Com ele fiz gols de toda forma e passei manhãs e tardes sem perceber o tempo fluir.
Pelé foi meu companheiro inseparável de infância. Minha inspiração para crescer e fazer gols na vida.
No dia 23/11/1968, saí de trem de Ibiá e vim a Belo Horizonte assistir um jogo entre Atlético e Santos. Na realidade viajei uma noite inteira para ver o Pelé. Não foi como eu imaginava. Foi muito melhor.
Como Santista e Atleticano, fiquei com o coração partido. Porem, ver o Pelé tabelando com Edu foi inesquecível.
O jogo terminou 2 x 2, para minha alegria. Lola e Vaguinho marcaram para o Galo. Edu e Pelé empataram o jogo no segundo tempo. Finalmente vi, o soco no ar.
Dois anos depois, já morando na casa do meu irmão em Belo Horizonte, assisti, ao vivo e a cores, a inesquecível copa de 70. Meu irmão quebrou o pé chutando uma mesa, num lance histórico em que Pelé deu um drible de corpo no Mazurkievski e chutou para fora. O ex-goleiro do meu Galo, continuou procurando a bola pelo resto de sua vida.
Meu irmão e o mundo inteiro nunca se esqueceram daquele gol que não foi, mas se tivesse sido, não teria feito a menor diferença. O calo ósseo o lembrava todos os dias de um dos lances mais geniais de todos os tempos.
Em meados da década de 90, fui a Londres participar de uma reunião. Na longa fila burra da imigração tinha gente de todo canto do mundo. Gente de toda cor, sotaques mil, vestes do mundo amarrotadas de viagem.
No vai e vem da fila, percebo ao meu lado um negro de óculos escuro, mais ou menos da minha altura, elegantemente vestido com um terno impecável e um sobretudo bege que parecia ter saído da capa naquele instante. A cara era de gente conhecida que eu não sabia de onde.
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Pelé !! Exclamei em voz alta. Foi inevitável.
Quem estava ao meu lado logo perguntou! Cadê?! Where?!
Ele simplesmente abriu o seu sorriu inconfundível, acenou e permaneceu pacientemente na fila da imigração, como todos os demais mortais que lá estavam. O tumulto foi inevitável.
Subitamente a fila andou mais rápido que o normal. Os oficiais da imigração queriam ter a chance de atender o Rei.
Foi quando virei para ele e disse:
-Rei, você é ministro, não precisa ficar na fila.
Nesse momento percebi o que ser um verdadeiro Rei.
-Estou em viagem pessoal, não é legal - respondeu ele.
-Pacientemente seguiu na fila dando autógrafos em passaportes que certamente viraram relíquias.
Um oficial saiu da cabine e o conduziu por um caminho destinado a autoridades, o qual ele havia se negado a seguir por iniciativa própria. O tumulto causado pela presença do Rei ameaçava a formalidade britânica.
Alguns minutos depois, para minha surpresa, lá estava ele novamente ao meu lado recolhendo a sua própria bagagem.
Dessa vez, pedi-lhe permissão para tirar uma foto ao seu lado. Com a cara mais tranquila do mundo e com a gentileza de quem sabia ser ídolo, pousou ao meu laudo e tiramos uma foto. Batemos um breve papo, não me lembro sobre o que, até que nossas malas aparecessem na esteira.
Ele pegou a dele, eu peguei a minha. Nos despedimos e ele saiu sozinho por uma porta qualquer.
Há poucos dias, vasculhando a minha caixa de retratos, encontrei a foto histórica ao lado do meu ídolo de uma vida inteira.
Ser de carne e osso que carrega a própria bagagem e o fardo de ser quem sempre foi. Parou guerras na África, virou atleta do século e se despediu dos campos dizendo love, love, love.
Pelé é uma entidade. A alegria, o símbolo e a imagem de um país. Uma onda de rádio, uma miragem.
Embaixador planetário a nos representar no infinito.
Pelé encantou nossas vidas e nos mostrou que para dar socos no ar e fazer o improvável, é preciso persistir, dedicar, chorar, ter um pouco de sorte. E, sobretudo, sorrir.
Obrigado Pelé.