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Ainda menino fui ao Rio com meus pais e nos hospedamos na casa da madrinha Nair e padrinho Carlos, do qual herdei meu primeiro nome. Meu pai resolveu homenagear os seus dois cunhados, me batizando com o nome composto Carlos Ernesto.

Conheço muitos Albertos, Eduardos, Fernandos, mas Ernesto, nenhum. Deve ser tão raro quanto homenagear cunhado.



Ela, minha madrinha de batismo, irmã do meu pai, Nair Starling, escritora, poetisa, trovadora e folclorista. Sua obra mais conhecida é o livro Nossas Lendas, hoje encontrado na Estante Virtual.

Dormindo na casa deles, um estranho barulho nos acordou durante a noite. Era um poct-poct infindável, acompanhado de risadas altas de gente se divertindo.

- O que que é isso, mãe? - perguntei assustado.

- Nada meu filho. Vira pro canto, tapa o ouvido e dorme.

No dia seguinte, no café da manhã, o assunto invadiu a mesa.

- Seu Di essa noite estava impossível!, comentou minha madrinha em tom de quem não tinha virado para o canto e dormido.

Estranho, meu pai e padrinho Carlos riam ao falar da madrugada ruidosa. De certa forma, perecia que aprovavam o misterioso poct-poct. Minha mãe fazia cara de brava e minha madrinha achava uma graça sem graça. Eu não entendi nada.



Assim foram todos os dias que estivemos no Rio. Pelo jeito, seu Di gostava de uma farra.

Numa tarde, voltando de um passeio, encontramos o seu Di na porta do elevador.

Ele era um velho gordinho que me apertou as bochechas e soltou um galanteio para minha madrinha.

- Minha vozinha de olhos de mar, que prazer em vê-la! Quem são esses!?

- Oi Seu Di, esses são minha cunhada e meu afilhado de Minas, que o senhor não tem deixado dormir a noite.

- Me desculpem, é que trabalho muito à noite. Fiquem tranquilos, vou maneirar.

Maneirou nada. Continuou tudo do mesmo jeito durante todo tempo que estivemos por lá.

Anos depois, meados da década de 1980, voltei ao Rio para fazer um curso no INCA (Instituto Nacional do Câncer) e resolvi ficar na casa dela.



A solidão da viuvez já lhe fazia companhia há alguns anos. O estranho barulho noturno não mais existia.

Seu Di também havia falecido.

Num demorado café da manhã, com geleia e requeijão, ela me contou o segredo do misterioso poct-poct.

Seu Di era o genial Di Cavalcanti, seu vizinho de cima por vários anos.

Idealizador e protagonista da Semana de Arte Moderna que revolucionou a arte no Brasil. Filiado em 1928 ao Partido Comunista, Seu Di passou boa parte da vida fugindo de fascistas e nazistas.

Em 1932, foi preso no contexto da Revolução Constitucionalista. Em 1936, ainda perseguido, fugiu para Paris, de onde também teve que sair às pressas com o início da Segunda Guerra Mundial.

Ela e Seu Di tinham em comum, além da vizinhança na Rua do Catete 222, admiração recíproca e o amor pelas coisas genuinamente brasileiras. Ela o folclore e ele o colorido multirracial, particularmente as mulatas.



O atelier do Seu Di ficava bem em cima da nossa cabeça. O poct-poct que numa noite longínqua da minha infância havia me assustado, era apenas o tamanco das mulatas que circulavam pela casa durante a noite.

No apartamento-atelier do Seu Di circulavam figuras como Vinícius de Morais, Jorge Amado e até o presidente Juscelino Kubitscheck havia passado por lá.

Muita poesia, arte e risadas noturnas.

Madrinha Nair lutou incansavelmente durante vários anos contra o poct-poct noturno. A princípio, ajudou Seu Di a colar um feltro nos tamancos das mulatas. Não funcionou. Elas escorregavam. A solução definitiva veio tempos depois com as pantufas. Mas, o que parecia ter sido uma solução se transformou num vazio perturbador. O poct-poct já fazia parte de sua rotina. Virou folclore. Naquele momento, ela daria tudo para tê-lo de volta.

No último 8 de Janeiro, ao ver "As Mulatas" do Seu Di (1962) sendo violentadas por um nazifascista bolsonariano, não pude deixar de lembrar daquela minha primeira noite no Rio.

Poct-poct ...vira para o canto, tapa o ouvido e dorme!? Jamais!

Jamais!!