Jornal Estado de Minas

ARTIGO

As cinzas


Com os janeiros passando, a percepção de finitude se torna cada vez mais real e presente em nossas vidas.

Quanto mais janeiros, mais comprimidos nas gavetas e pomadas no banheiro. Inevitável!

Uma losartana aqui, uma metformina  ali, uma pomada para hemorroida acolá e aos poucos  você vai percebendo o motivo da indústria farmacêutica ser uma das mais poderosas do mundo.





Araujos, Raias, Pachecos etc. disputam centímetro a centímetro as esquinas do mundo, suas gavetas, os armários do seu banheiro e uma fatia considerável de sua aposentadoria.

Os amigos vão raleando na velocidade que a careca aumenta e o pente fica cabeludo. Só essa semana perdi dois. Dois amigos e vários pentes, os quais faziam figuração no meu bolso. 

Os amigos, não! Esses foram extremamente doídos. O Du Lobato, jovem de 41 anos, meu companheiro de pelotão de ciclismo, foi brutalmente atropelado por um motorista embriagado. Cadê a Lei Sêca??

O Ricardo Múmia foi câncer. Depois de longo calvário, descansou. Pelo menos é o que dizemos para tentar amenizar o sofrimento familiar. 
A gente perde o amigo mas não perde a piada. Quem me deu a notícia foi o Guri: 

- O Ave, cê saiu dos grupos todos de WhatsApp, o Múmia morreu!
- O Múmia morreu?! Como assim?!

Me lembrei do Treco, tratorista da fazenda do meu avô, sanfoneiro e animador de velórios. 





Certa vez, no velório de uma amigo, quando o frio da madrugada ia invadindo a casa, a viúva se prontificou a pegar a carteira para comprar um esquenta peito para os poucos que lhe faziam companhia. Ele veementemente se contrapôs:
- A senhora não! A senhora já entrou com o defunto.
 
E assim, brota na sua cabeça, ou na conversa de cantina de cemitério a inevitável pergunta: enterrar ou cremar?!

O que fazer da sua própria carcaça após o último suspiro e o relaxamento dos esfíncteres? Também, inevitável.

Com o tradicional viés científico, fui para o Medline e procurei estudos observacionais e meta-analiticos sobre as vantagens e desvantagens de ambas as intervenções com o desfecho funesto. Para os interessados, tentei a seguinte estratégia de busca PICOTT(população, intervenção, controle, outcome, tipo de estudo e tempo:

P-falecidos
I-cremar
C-enterrar
O-satisfação do cliente
T-estudos observacionais(caso-controle e radomizados não disponíveis)
T-a eternidade

Nada! Só sobrou o nada e a solitária decisão de definir o destino a ser dado a nossa própria carcaça.





Mas é nessas horas que vale a experiencia  do expert e a opinião do especialista. Nesse caso, a minha própria opinião.

Como filho mais novo e temporão, escolher caixão e arrumar enterros  virou uma rotina na minha vida. De tempos em tempos, lá vou eu negociar com os “papa defuntos”. 

Se você também for um caçulinha, saiba que os mimos do passado serão duramente cobrados no futuro, caso tudo dê certo e você tenha essa felicidade.

No passado a discussão girava em torno do caixão: luxo, standard ou simples? As perguntas seguintes sempre giram em torno do tamanho e peso do falecido, seguido de ornamentação e outros penduricalhos. Funciona mais ou menos como companhia aérea. Quanto maior o volume e conforto, maior o preço da passagem para o além.

Na sequência vem a pergunta capital: cremação ou sepultamento?
Claro, os adereços sempre presentes em ambas as opções (velório, caixão, coroas, lanche etc).

Há um ano vivi a minha primeira experiência com a cremação. Minha irmã que sempre gostou de estar na moda, manifestou seu desejo de ser cremada. Desejo de moribundo é ordem. 





Fato consumado e reunidos com o agente funerário, meu sobrinho esculachou de cara: "Hoje vamos queimar uma carninha e escutar um chorinho!"

Bem humorada que ela era, deve estar rindo eternidade a dentro.

Quase morri de susto com o preço da cremação. O dobro do que paguei pelo defunto anterior no enterro convencional. Mas, quem consegue contrariar desejo expresso de parente morto?! Ainda mais irmã. Paga e não bufa, como ela própria dizia.

A surpresa maior veio depois, no pós velório e cinzas em mãos. Aliás, cinzas devidamente armazenadas em outra urna funerária de luxo, quase tão cara quanto a primeira, cujo destino ecologicamente correto deveria ser a reciclagem e reuso pelo freguês seguinte.





Claro, após devida desinfecção para evitar infecção cruzada entre cadáveres. 

Problema polêmico e de complexidade trigonométrica:- onde jogar as cinzas?! Para uns, mais um momento de sofrimento e dor. Para outros,  motivo para beber novamente o morto.

As sugestões e os contras surgem na mesma velocidade.

-Vamos jogá-la na Serra do Curral de helicóptero! 
-Na Serra não!  Vai misturar com minério e virar maçaneta de banheiro de boteco lá na China. Coitada! Além disso, helicóptero é caro e perigoso. Vai que cai! Só de enterro quebra a família inteira.

Alguém sugere jogá-la na Lagoa da Pampulha, o que foi imediatamente contestado: 
- Claro que não! Lagoa poluída e fedorenta. Ela era tão elegante e perfumada, não combina. Além disso, morria de medo de jacaré.





A praça da Liberdade foi a sugestão seguinte, a princípio, visto com simpatia.
- Ela era tão tão livre e independente. Combina com ela.
 Mas, a contestação foi contundente:
-Lá não pode, é proibido! Já pensou se a cidade inteira resolve jogar as cinzas dos seus mortos lá?!  A praça viraria uma carvoaria!  Na primeira ventania que desse poluiria a cidade inteira. Além disso, a quantidade de gente que passeia com cachorro por lá é um problema. Cada poste e tronco de árvore é território definido. Ela não merece descansar levando xixi e cocô de cachorro na cara todo dia.

Pronto, morreu a praça da Liberdade!

Perceberam o tamanho do problema?! O mundo ficou um lugar inóspito até para os mortos.

Resultado, por falta de consenso familiar, ela veio morar comigo! Ocupa um cantinho no armário do nosso closet. 

Justo?! mais do que justo! Morei com ela na Alemanha, dei despesa, trabalho e preocupação.
Ela, pelo contrário, fica quietinha e não me preocupa em nada. 

Em conclusão, depois dessa polêmica experiência, siga o tradicional. Opinião de expert! Caso optem pela variável alternativa, se possível eviável, perguntem antes ao interessado sobre o destino a ser dado as suas cinzas.

Nesse Domingo de Páscoa, tenho certeza que todos que enterramos ao longo da vida, com muita saudade, lágrimas e humor, seguem mais do que vivos, morrendo de rir das trapalhadas de nossos rituais absurdos, caros e sem qualquer sentido prático.

Amém!