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Estado de Minas ARTIGO

A ''merda''

'Na intimidade dos palcos, entre cortinas e cenários, essa palavra ganhou contornos de um amuleto, um desejo de sorte'


17/10/2023 06:00 - atualizado 16/10/2023 17:28
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Ilustração - pessoa xingando
(foto: gdw96/Pixabay)

Já foi o tempo que mandar alguém à merda significava briga certa. 

Esses dias, mandei Sophia, minha filha adolescente, à merda. Ela, a princípio, assustou por alguns segundos. Depois, morreu de rir e continuou o "bullying" doméstico, típico de adolescentes merecedores do xingando antigo e ultrapassado.

Para um ator, desejar "merda" é carinho. Na intimidade dos palcos, entre cortinas e cenários, essa palavra ganhou contornos de um amuleto, um desejo de sorte. 

Assim como no teatro, onde a palavra "merda" evoluiu de um termo vulgar para um desejo sincero de sucesso, na literatura a abordagem de temas considerados "sujos" ou "desagradáveis" tem sido transformada em arte por cérebros talentosos. Autores como Kafka, Beckett, Bukowski e Joyce não hesitaram em mergulhar nas profundezas da condição humana, expondo as "merdas" da existência e da sociedade.

Franz Kafka, por exemplo, com sua visão sombria e absurda da burocracia e alienação, como retratado em "A metamorfose", apresenta a metamorfose de um homem em um inseto como uma manifestação literal da degradação e insignificância humanas. Nesse contexto, a transformação em algo repulsivo e indesejado pode ser vista como uma representação da "merda" onde todos pousamos em algum momento de nossas vidas.

Além dos holofotes, plateias e conflitos domésticos, a merda tem uma história rica e multidimensional, que se estende desde o palco, a poesia, a filosofia, até os laboratórios de ciência, epidemiologia e campos agrícolas.

Nas clínicas e hospitais, por exemplo, o que poderia ser considerado indesejável ou repulsivo torna-se uma ferramenta essencial de diagnóstico clínico e epidemiológico.
 

Fezes são analisadas em busca de sinais de infecções, parasitas ou até indícios ocultos de doenças mais graves, como o câncer de cólon. O transplante de fezes  e drágeas contendo microbiota fecal, embora possam soar estranho, tem sido a salvação para muitos pacientes com diarreia grave por toxinas produzidas por patógenos resistentes.

Cientificamente, mandar ir à merda pode significar investigar profundamente um problema. Ou seja, ir às últimas consequências numa propedêutica.

Para gerenciar a pandemia em Belo Horizonte, usamos dados preciosos produzidos pelo Departamento de Saneamento da UFMG. O professor César Mota e sua equipe de brilhantes pesquisadores mensuraram a concentração de vírus da COVID-19 em diversas estações de tratamento de esgoto da cidade. Esta informação nos adiantava o que iria acontecer com a demanda por atendimento médico e leitos hospitalares em até 14 dias.

O uso do esgoto sanitário em epidemiologia é hoje uma ferramenta poderosa para entender as condições de saúde da população de uma forma rápida e ao mesmo tempo sofisticada.

Por outro lado, em estudos avançados sobre o microbioma, cada amostra fecal é uma janela para um universo complexo e vibrante, revelando os bilhões de microrganismos que convivem em nosso intestino. Este ecossistema, intrinsecamente equilibrado, tem conexões surpreendentes com nossa saúde mental, imunidade e até propensão a certas doenças. 

Assim, o que uma vez foi descartado como "merda", hoje é visto como um tesouro biológico.

E a agricultura? Aí a merda, sob a forma de esterco, tem sido o ouro negro dos campos há séculos. Enquanto fertilizante, o esterco nutre o solo, tornando-o fértil e preparado para dar vida a uma variedade de culturas. 

Marneu, meu irmão, usava na fazenda Europa em Ibiá, o " ciclo da merda" para gerir curral, galinheiro e piscicultora. Segundo ele, ninguém nunca reclamou do leite, do frango com quiabo ou da tilápia frita com limão siciliano e cachaça, todos, frutos do mesmo ciclo.

Mas não para por aí. Com as preocupações crescentes sobre as mudanças climáticas e a busca por fontes de energia renováveis, as fezes também estão sendo reconhecidas como uma fonte potencial de biogás, que, quando produzido e processado corretamente, pode fornecer uma alternativa mais limpa aos combustíveis fósseis.

E, se voltarmos no tempo, aos sítios arqueológicos, encontraremos coprólitos, fezes fossilizadas que contam histórias de civilizações antigas, revelando detalhes sobre suas dietas, estilos de vida e até doenças. Em ecologia, as fezes de animais selvagens são uma fonte inestimável de informação, ajudando os cientistas a rastrear movimentos migratórios, entender comportamentos alimentares e monitorar a saúde das populações animais.

Portanto, embora em muitas culturas a palavra "merda" possa evocar sentimentos de repulsa ou até ser usada como um termo agressivo e pejorativo, ela desempenha papéis cruciais em muitos aspectos de nosso mundo. 

Do teatro à medicina, da agricultura à arqueologia, ela nos lembra que a beleza, a utilidade e o valor muitas vezes podem ser encontrados nos lugares mais inesperados. E assim, de maneira mais profunda e complexa do que podemos imaginar inicialmente, a "merda" realmente faz diferença.

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