Há alguns anos, namorei um professor de direito e procurador-geral da União (do tipo com mestrado, doutorado, pós-doutorado e mil especializações) cujo apreço pela língua portuguesa chegava a ser irritante até para mim. Não sei se por implicância ou por exibicionismo, esse homem, nos nossos momentos de brigas (que não eram poucos; afinal, éramos mais possessivos do que todos os pronomes possessivos juntos), tentava, de todas as formas, mostrar que dominava a última flor do Lácio, vulgo língua portuguesa, mais do que eu. E o que acontecia? Eu ficava tão irritada com a situação que sempre perdia no quesito argumentação.
Certa vez, após almoçarmos em uma tarde de sábado, ele foi para a minha casa. Enquanto esperávamos pelo elevador, eu comentei:
– Ainda chegará o dia em que todas essas placas de aviso de elevadores serão corrigidas. Aff!
– Oi?
– Você nunca reparou? “Antes de entrar no elevador, verifique se o mesmo se encontra parado
neste andar.”
– E daí?
– E daí que a palavra “mesmo” não pode retomar outra palavra, como elevador.
– Claro que pode! “Mesmo” é um pronome demonstrativo. Está demonstrando onde devemos ou não entrar.
– Realmente, “mesmo” pode atuar como
pronome demonstrativo, mas ele retoma uma
oração, não uma palavra, Maurício.
– Exemplo?
– Eu sou uma namorada fiel; por isso espero que o meu namorado faça o mesmo. Viu? Recupera-se, aí, a oração sobre a fidelidade.
– Isso é uma indireta, Cíntia?
– Não, é direta mesmo.
– E esse “mesmo” de agora?
– É um advérbio com valor reforçativo, Maurício. Ele reforça quão galinha você é. O elevador
chegou. Vamos.
– Mesmo? Hahaha...
– Não fuja do assunto. Estou cansada das suas ciscadas por aí.
Chegando, eu retirei as minhas roupas e coloquei um roupão.
Ele tirou os sapatos, como quem mostra que vai ficar, mas recebeu um telefonema sei lá de quem e prontamente respondeu:
– Claro que vou. Em dez minutos estarei aí.
– Oi??? Você vai me deixar aqui mesmo?
– E esse “mesmo”?
– Equivale à palavra “realmente” e ao provável término do nosso namoro se você sair daqui.
Perguntei para ele de quem se tratava, mas Maurício desconversou. Disse que eu não conhecia a pessoa em questão, que ele precisava “dar uma passada” no tal lugar, que eu não iria gostar do barzinho, blá-blá-blá... E começou a ladainha linguisticamente ortodoxa comum aos discursos que ele ensaiava nas nossas brigas:
– Cíntia, eu sou um homem de conduta ilibada, de quem você não pode duvidar. E você é a mulher pela qual sou apaixonado. Você tem tudo quanto quer de mim e ainda assim sempre duvida dos lugares onde digo que estou.
– É mesmo? Fiquei lisonjeada...
– Esse “mesmo” foi irônico. Não admito ironias sobre a minha fidelidade.
– Maurício, você não me engana. Eu ouvi voz de mulher. Quem está lá? Quantas mulheres são? De onde é esse amigo misterioso do qual eu nunca ouvi falar? Aposto que é aniversário de mulher, por isso você não quer me levar. Não é? Você já estava distante na hora do almoço. Eu senti!.
– Não me venha, Cíntia Chagas (ele sempre me chamava de Cíntia Chagas durante as brigas), com o seu discurso falacioso! Sou um namorado de cuja fidelidade você não pode duvidar. Quer saber? Vou embora. Passar bem.
E saiu correndo do meu apartamento. E eu saí correndo atrás dele, afinal de contas, ele tinha de me ouvir. Mas o caso é que eu estava de roupão e não me lembrei desse detalhe. Pois bem: vi-me de roupão, no meio da rua, brigando com o senhor sabe-tudo. Cena de novela: atirei-me na frente do carro dele e disse:
– Daqui você não sai.
Ele, frio como um iceberg, respondeu:
– Só se você me disser que “mesmo” substitui
palavra, que estou certo.
– Maurício, não me irrite! Já expliquei que
“mesmo” não substitui palavra e ponto final.
Ele, divertindo-se com a situação, disse:
– Então como ficaria a placa do elevador, Rainha da Língua Portuguesa?
– “Antes de entrar no elevador, verifique se este se encontra parado neste andar”. Pronto, Maurício. Agora saia do carro. Os vizinhos já estão olhando. Não vê que estou de roupão?
– É mesmo? Coitadinha... isso é para você
aprender a não desconfiar de mim.
Deu ré e foi embora.
Então fiquei ali, na rua, de roupão, sem a chave do portão do prédio, à espera de um vizinho com quem eu pudesse contar. E você, leitor, neste momento pergunta a si mesmo: mesmo? De roupão na rua? Mesmo...