Jornal Estado de Minas

ANÁLISE

A democracia racial está em ruínas?

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O mito da democracia racial foi, até recentemente, um dos pilares da sociedade brasileira. De maneira geral, chamamos de mito da democracia racial a ideia, largamente difundida, de que a relação entre brancos, negros e indígenas no país é marcada, fundamentalmente, pela harmonia e que situações de racismo e discriminação seriam apenas episódicas.





Florestan Fernandes, um dos mais destacados sociólogos brasileiros do século XX, captou como poucos essa nossa tendência de evitar explicitar os conflitos raciais ao afirmar que teríamos “preconceito de ter preconceito”, pois a discriminação seria ultrajante para quem sofre e degradante para quem a pratica. 

Por essa razão, uma das estratégias adotadas pelas organizações dos movimentos negros nos últimos 40 anos esteve em denunciar a falácia do mito da democracia racial. Essa estratégia teve como um dos seus efeitos mais imediatos o aumento da conscientização da população negra, que passou a reivindicar com maior veemência ações políticas efetivas para o combate ao racismo.  

O recente aumento nas denúncias de casos de racismo também pode ser interpretado como um dos efeitos dessa estratégia de denunciar o mito da democracia racial. Revela ainda que o racismo explícito saiu do armário. A ideia de uma coexistência harmoniosa entre brancos e negros parece estar em ruínas diante da realidade contenciosa a que assistimos quase que cotidianamente nos noticiários. 

Nos últimos dias três casos de racismo que ganharam bastante visibilidade na mídia apontam para um inequívoco processo de corrosão do mito da democracia racial. Em Patos de Minas, Madalena Gordiano foi mantida em condições análogas à escravidão por 38 anos, sendo passada de mãe para filho como se fosse um objeto. Madalena só conseguiu ser resgatada após deixar bilhetes solicitando pequenas quantias de dinheiro emprestado aos vizinhos, que desconfiaram dos pedidos e acionaram o Ministério Público do Trabalho. A família que a mantinha escravizada negou as denúncias sob a desculpa de que não a consideravam uma empregada, pois ela era “quase da família”.





Em Caldas Novas, Luiz Eduardo Bertoldo Santiago, uma criança de 11 anos, atleta do Uberlândia Academy, denunciou, aos prantos, uma situação de racismo pela qual passou em uma partida de futebol. O caso obteve grande comoção pública e levou atletas de destaque, que usualmente não se pronunciam sobre racismo, como Neymar e Gabriel Jesus, a mandarem mensagens de solidariedade e apoio ao menino. Além disso, Luiz recebeu convites para fazer testes em diversos times, como Vasco, Fluminense e Santos.

O terceiro caso envolveu o meia Gerson, do Flamengo, que relatou ser vítima de racismo por parte do jogador Juan Pablo Ramírez, do Bahia. Segundo Gerson, o técnico adversário ainda minimizou a situação. Após a partida, o técnico do Bahia foi demitido (segundo o clube não em decorrência de sua intervenção no caso de racismo relatado) e o clube afirmou que investigaria a acusação de racismo.

O “cala boca, negro” proferido para Gerson, as injúrias racistas ouvidas pelo menino Luiz e a supressão de direitos humanos básicos a que foi submetida Madalena são tentativas, cada uma à sua maneira, de silenciar a insurgência negra contra a falácia da democracia racial e retroceder o país para o tempo em que os negros “sabiam o seu lugar”, consideravam ultrajante serem vítimas de discriminação e se calavam, com receio de serem chamados de “vitimistas” ou sofrerem represálias. Porém, o mito da democracia racial segue em processo acelerado de erosão e, para que continue ruindo, é essencial não se calar.  Falem, negros! Falem!






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