O funk, gênero musical brasileiro criado e popularizado nas favelas e subúrbios do Rio de Janeiro, ocupa, no início do século 21 o lugar que, um século antes, foi ocupado pelo samba. Assim como ocorreu com o samba no período pós-abolição, o funk é severamente criticado e perseguido. Os bailes funk são frequentemente alvos de abordagens policiais violentas, injustamente associados ao tráfico e à criminalidade e seguem imersos em controvérsias sobre sua importância cultural. Além disso, alguns de seus expoentes, como o DJ Renan da Penha, são perseguidos e presos com base em alegações frágeis ou inverídicas.
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Guia de slams: livro reúne história das batalhas de poesia na Grande BH'Funkeiros não merecem o desprezo de ninguém', diz Hariel, astro do batidãoDiversidade, inclusão e as armadilhas do TokenismoAs muitas formas de se matar negrosPor que protestamos?Os donos do poder Qual o limite do diversionismo bolsonarista?Ao mesmo tempo, nas periferias da cidade eclodia o Movimento Black Rio capitaneado por jovens negros que, influenciados pelos movimentos da contracultura e pelo Black is Beautiful, organizavam bailes soul com a participação de diversas equipes de som. Esses bailes, como os que ocorriam no Renascença, tradicional clube negro da zona norte carioca, eram marcados por uma forte afirmação da identidade negra. Durante os bailes eram projetados trechos traduzidos das letras das músicas norte-americanas, imagens de lideranças negras e de personagens ficcionais. Trechos do filme Shaft e de outras produções blaksplotation, bastante populares no período, também eram projetados.
O funk carioca já nasceu cosmopolita e internacionalizado a partir dessa mescla de ritmos e culturas. As equipes de som, como a Furacão 2000, ganharam ainda mais popularidade nos anos 1980 e a presença dos MCs, que improvisavam letras sobre a realidade vivida enquanto os DJs tocavam samples de gêneros musicais diversos mas, em especial, do Miami bass, também se tornou um elemento central dos bailes. Os primeiros trabalhos acadêmicos sobre o funk, como a dissertação de mestrado do antropólogo Hermano Vianna, foram realizados no período. Vianna afirma em sua pesquisa que, nos anos 1980, o funk carioca já reunia cerca de um milhão de pessoas nos 700 bailes que existiam na cidade.
Nos anos 1990 o funk carioca se popularizou Brasil afora e músicas que versavam sobre temas relacionados à pobreza, violência policial e injustiça social, como o Rap da Felicidade e o Rap do Silva, foram tocadas intensamente em rádios de todo o país. Entretanto, as estratégias de criminalização e vilanização do funk também se intensificaram. Várias reportagens e matérias produzidas na época passaram a associar o funk ao tráfico de drogas, à permissividade sexual e aos arrastões que se tornaram frequentes na zona sul carioca. Isso fez com que a popularização do funk tivesse vida curta.
Nos anos 2000 o funk carioca se diversificou. A ascensão de funkeiras mulheres, tais como Tati Quebra Barraco, Deize Tigrona e dos bondes femininos, que falavam abertamente sobre prazer feminino e liberdade sexual causou grande furor e contribuiu, juntamente com a maior presença de fun keiros em programas televisivos, para uma repopularização do gênero. E também para o início de sua internacionalização. O documentário “sou feia mais tô na moda”, dirigido por Denise Garcia, lançado em 2005, retrata com cuidado a realidade dessas “feministas sem panfleto e sem cartilha”. O documentário teve boa repercussão internacional e, no mesmo ano, foi lançada a música Bucky Done Gun, da artista inglesa M.I.A, que continha um sample do funk “Injeção” da Deize Tigrona e popularizou o gênero internacionalmente.
Essa repopularização do funk foi acompanhada de forte crítica. O lançamento do filme Tropa de Elite, que trazia em sua trilha sonora a música Rap das Armas, lançada originalmente em 1995, reacendeu os debates que associavam o funk ao tráfico de drogas e à criminalidade. Além disso, durante o governo Sérgio Cabral no Rio de Janeiro foram criadas as UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) em algumas favelas da capital. As UPPs proibiram a realização dos bailes e o funk carioca viveu um momento de declínio, enquanto algumas de suas derivações, em especial o funk ostentação de São Paulo, ganharam maior visibilidade. Nesse período o canal do diretor de funk Kondzilla tornou-se o mais popular do Youtube brasileiro, com mais de 50 milhões de inscritos e o funk passou a ser o segundo gênero musical mais escutado no país, atrás apenas do sertanejo.
Apesar de continuar perseguido o funk segue se fortalecendo e mostrando a vivacidade e criatividade das culturas juvenis das periferias do Brasil. Além de contar com cantoras de popularidade nacional e internacional, como Ludmilla e Anitta, novas derivações do funk, tais como o 150bpm e o brega funk, promovem uma renovação constante do gênero.
O funk, para além de garantir lazer e divertimento, permite que jovens negros e mestiços das periferias e favelas do país olhem para si como produtores de cultura, que reconheçam e valorizem seus lugares de origem e queiram se propalar de lá para o mundo, porém sem negar suas raízes. Rebeca Andrade, que se tornou a primeira brasileira a conquistar uma medalha na ginástica artística dos Jogos Olímpicos, exemplifica como poucos o impacto político e cultural do funk. A ginasta, que iniciou sua carreira em um projeto social da Prefeitura de Guarulhos, conquistou sua medalha ao som de “Baile de Favela”, música do Mc João que lista e celebra as favelas e os bailes de São Paulo. Rebeca levou sua quebrada e o baile funk pro mundo e com isso nos fez acreditar que o funk pode sim ser a cola da cidade partida.