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Para evitar traumas e distorções, fuja do não

Dizer o que não é soa pouco objetivo, impreciso, hesitante. Dá trabalho chegar à forma positiva? Às vezes dá. Mas vale a pena. Veja o exemplo: Os políticos não sabem que fazem parte do Estado. Melhor seria: Os políticos ignoram que fazem parte do Estado


postado em 02/10/2019 04:00

Deputados no Congresso Nacional(foto: Luís Macedo/Câmara dos Deputados)
Deputados no Congresso Nacional (foto: Luís Macedo/Câmara dos Deputados)


Recado

"Tenha pena dos leitores."
. Kurt Vonnegut



Duas dicas para fisgar o leitor

Você gosta de ouvir um redondo não? Ninguém gosta. Nem os bebês. Dizem que a criança que escuta muitos nãos nos primeiros meses de vida grava a negação na mente. Aí, Deus a acuda. Candidata-se ao título de adulto infeliz. Para alegria do psicólogo, claro. O leitor e o ouvinte também têm horror a esse advérbio. Fazem tudo para ignorá-lo. Muitas vezes, passam batido por ele. O recado, então, é lido pelo avesso. O emissor diz uma coisa. O receptor entende outra. Pra evitar traumas e distorções, fuja do não. Use uma linguagem positiva. Diga o que é, nunca o que não é. Não chegar na hora é chegar atrasado. Não ser necessário é ser dispensável. Não vir à aula é faltar à aula.

Forma positiva

Dizer o que não é soa pouco objetivo, impreciso, hesitante. Dá a impressão de que se está fugindo do compromisso de afirmar. Como escapar do não? Reescreva a frase mantendo a ideia. Quer ver?

1.   Ele não acredita que o professor chegue a tempo.
Ele duvida que o professor chegue a tempo.

2.   Os políticos não sabem que fazem parte do Estado.
Os políticos ignoram que fazem parte do Estado.

3.   O ministro diz que não fará alterações no programa de privatização.
O ministro nega alterações no programa de privatização.

4.   Não se lembrou do recado.
Esqueceu-se do recado.

5.   Os laboratórios não podem fabricar os novos remédios se não pagarem royalties.
Os laboratórios só podem fabricar os novos remédios se pagarem royalties.

6.   Não é possível reparar os erros passados.
É impossível reparar os erros passados.

7.   A lei não altera a situação dos aposentados.
A lei mantém a situação dos aposentados.

8.   O servidor público não é mais servidor.
O servidor público deixou de ser servidor. 

Xô, preguiça

Dá trabalho chegar à forma positiva? Às vezes dá. Mas vale a pena. O que se escreve com esforço se lê com prazer. Lembre-se disso antes de desanimar.

Forma concreta

Não só a forma positiva agrada ao leitor. A forma concreta assegura aplausos semelhantes. Como chegar lá? Escolha termos específicos. Há palavras que são mais focadas que outras. Gato siamês é mais singular do que simplesmente gato; homem, mais do que animal; laranjeira, mais que árvore; árvore, mais do que planta ou vegetal. Trabalhador é termo de sentido geral, muito amplo; jornalista tem sentido mais restrito; jornalista da TV Senado, mais ainda.

Ao descrever uma cena de rua, você pode referir-se genericamente a transeuntes ou particularizar: homens, jovens, estudantes, alunos da USP. Escrever "foi um período difícil" constitui vagueza. "Estive desempregado durante três meses" é mais preciso, bem melhor.

Genérico x concreto

Compare os textos. O primeiro prima pela generalização. O segundo, pela especificação:
Os jovens chegaram num carrão bonito. Usavam calças velhas, camisetas e óculos. Entraram no primeiro restaurante que encontraram pela frente sem se preocupar com o preço.

***

Os jovens, entre 15 e 18 anos, chegaram numa BMW azul. Usavam calça jeans com remendos nas pernas, camiseta de malha branca e óculos de sol. Entraram no primeiro restaurante que encontraram pela frente, um italiano especializado em massas de Bologna, sem se preocupar com o preço.

Viu a diferença? Não foi por acidente que Gonçalves Dias compôs: "Minha terra tem palmeiras / Onde canta o sabiá". Se tivesse dito "Minha terra tem árvores / Onde canta o pássaro", seus versos estariam enterrados com ele, ignorados de todos.

A ordem

Siga a regra: o específico é preferível ao genérico; o definido ao vago; o concreto ao abstrato.

Leitor pergunta

Gosto de ditos populares. Além de transmitirem muita sabedoria, são concretos. Dizem em poucas palavras o que exigiria tratados longos e complexos. Mas um deles me chama a atenção. É “correr atrás do prejuízo”. Ele me parece sem lógica. O que acha?
. Célio Alencar, Erexim

Você tem razão. Nós corremos atrás do lucro. E corremos do prejuízo.

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