Por todos os dias da semana que hoje se parecem invariavelmente com domingos. Ninguém mais sabe se é domingo, segunda, feriado ou dia santo. Todos os dias são iguais nesta quarentena contra um vírus que tomou conta do planeta.
Por todos os amigos que não vejo há tempos. Com alguns ainda converso por telefone ou pelas redes sociais. Pelos lugares que não vou mais, porque há um desejo intenso em mim de continuar viva depois de tudo.
Pelas pessoas que estão doando máscaras e outros que trocaram o trabalho formal pela máquina de costura, em uma roda de solidariedade e respeito ao semelhante. Pela minha admiração ao líder indígena Ailton Krenak, que acaba de escrever um livro e disponibilizar o acesso gratuito na internet, com o título significativo O amanhã não está à venda. Por um dia de cada vez que vivo no presente, mas que em certas horas me deixa aflita e angustiada. Por minha teimosia em manter os meus sonhos limpos e macios, mesmo que eu não pense mais no amanhã. Mesmo que eu pense em chutar o balde às vezes, tenho medo de machucar os pés.
Pelo sol lá fora que insiste em entrar pelas gretas da janela e passear pelo meu corpo sedento de luz, magia e carícias. Pelos meus cabelos que estão ficando brancos de tanto pensar e viver. Cada fio branco conta uma história. Cada ruga nova que amanhece comigo é sinal de que estou resistindo aos vendavais da existência.
Pelo filho que propõe fazer pães em casa e multiplica o milagre da vida. Pelo céu que nunca esteve tão deslumbrante, com luas cor de rosa e alinhamento de planetas. Pelos bichos que voltaram a tomar conta da natureza, depois que os seres humanos se trancafiaram em casa.
Pelo telefonema do Toni uma noite dessas que me embriagou de ternura. Morador da Serra do Cipó, ele me falava como um poeta em noites estreladas. Juntos, olhávamos o céu. Ele conhecia todas as formações de estrelas, sem nunca ter estudado astronomia e sem telescópio. Toni é um ser de primeira grandeza e um jardineiro diplomado na prática. Toni – para que vocês são se esqueçam – é aquele nativo da Serra do Cipó que me pedia para plantar flores na entrada da casa, pois Nossa Senhora vem visitar, três vezes ao dia, os jardins onde brotam esses presentes coloridos de Deus.
Toni me ensinava a andar como os nativos. Ele notava que, urbana demais, eu pisava com os calcanhares primeiro, quando o certo é colocar a ponta dos pés. Ele me aconselhava a comprar um lote na Serra do Cipó e construir uma casinha. Santo Toni, quem dera pudesse ter asas e voar para aí agora. Mas lembre-se de que não sei nem cuidar de violetas.
Pelo geriatra Flávio Cançado, que manda mensagens iluminadas para que eu cuide de mim, dance sozinha dentro de casa, ouça músicas clássicas, alimente bem e não me importe em depender do Sistema Único de Saúde (SUS), que hoje é elogiado no mundo inteiro. Que ganhou o seu lugar ao sol. Pelos enfermeiros, doutores e assistentes que têm no coração a humanidade e o cuidado com o outro, em meio à pandemia. Pela música que os bombeiros tocam em frente à Santa Casa de BH. Eles vão às alturas para confortar os doentes.
Pela minha cachorra Mel, que trouxe para BH depois de adotá-la na Serra do Cipó. Mel é minha companheira de todas as horas, doce, sempre ao meu lado, como uma espécie de anjo da guarda.
Pela Genô, uma leitora antiga que não conheço pessoalmente, mas que voltou a fazer parte da minha quarentena. Uma das vontades que tenho depois desse período é ficar horas conversando com ela. Sentadas, olhando nos olhos uma da outra, enquanto tomamos um chá, um café ou quem sabe um vinho?
Pela primavera que tento há tempos ser na minha vida e na de outras pessoas. Ser flor, ser perfume, ser encantada e encantar. Pelos abraços apertados que quero dar. Desses abraços que curam, que fazem a gente se perder dentro deles.
Pelo mês de maio, que, depois de abril, tem o céu mais estupendo que conheço. Pelo outono de hoje que despeja folhas nas ruas. Desfolha os sentimentos, desnuda as árvores e os sentimentos, para que voltem fortalecidas, saudáveis e esbanjem beleza por todos os cantos.
Por essa espécie de cativeiro voluntário que aguçou ainda mais o meu olhar para tudo que realmente tem valor. Pela minha vontade de viver depois de muitas mortes interiores, de perdas incontáveis, de ter me esfacelado, me descabelado, me sufocado com os próprios vícios e virtudes, digo e repito de cor Os estatutos do homem. Do poeta Thiago de Melo, mais atual do que nunca, que diz em seu artigo 13: “Fica decretado que o dinheiro não poderá nunca mais comprar o sol das manhãs vindouras. Expulso do grande baú do medo, o dinheiro se transformará em uma espada fraternal para defender o direito de cantar e a festa do dia que chegou”.