“Vamos beber porque o mundo está acabando”, convocava um poeta mineiro no fim da década de 1970. O convite era imediatamente aceito por quatro ou mais companheiros (as), que faziam uma via-sacra pelos bares da cidade madrugada adentro. Em plena ditadura militar da época, o bar era ponto de encontro, de conversa, de complô.
Não havia celular nem internet e as pessoas se encontravam nessa espécie de Bar Don Juan –, livro de Antonio Callado (1971) – para conspirar, trocar ideias e tramar revoluções, sob a batuta do Saloom, na Rua Rio de Janeiro, no Centro de BH, sorvendo goles fartos de vodka com suco de tomate, e gim com Curaçau azul. Não havia bebida mais inspiradora do que aquela que levava todos para longe dos generais e suas fardas estreladas. Ela não se esquece do Chorare, na Rua da Bahia, cujo sócio-proprietário, o jornalista Benjamin Abaliac, era timoneiro dessa viagem sem repressão ou tortura. Entre conversas e bebidas todos sonhavam com o fim da ditadura militar.
A frase “Vamos beber porque o mundo está acabando” nunca foi tão atual. Só que não tem mais bar aberto nesta quarentena. O isolamento social exigido pelo coronavírus trancafiou entre quatro paredes os amantes dos bares e das bebidas. Ela, então, resolveu pesquisar entre os amigos, se, por caso, eles estavam bebendo mais do que antes da pandemia. Observando o próprio consumo, ela constatou que estava bebendo mais, que as doses de vinho e de cerveja aumentaram.
Enviou WhatsApp para amigos de longa data. Mirtes Helena Scalioni, que faz parte da geração dela, respondeu prontamente: “Claro que estou bebendo mais na quarentena. A bebida, assim como a música, ajuda a gente a seguir a vida. Faz esquecer um pouco a falta dos amigos, alivia a saudade dos netos, reativa lembranças de inesquecíveis saideiras e abraços, enobrece o coração nos transformando em poetas bobos, liberta palavras aprisionadas e confere leveza e esperança – mesmo que falsas. E entorpece do medo da morte”.
Mirtes e o marido, Silvio, dão shows em bares. Têm quatro netos, que não abraçam há tempos. A saudade aperta – e ela confessa: “Quem me dera um bar agora. Em tempos sombrios de isolamento e carência, não há quem não sinta uma honesta nostalgia dos bares. Afinal, para que servem os bares senão para desatar os nós, enlaçar corações, dar voz aos heróis, encurralar a alegria, espremer as dores, fustigar os instintos, acender os rebeldes, aplacar os solitários? Para que servem os bares, senão para enlamear os nobres, sussurrar promessas, soprar esperanças, calar vozes, gritar impropérios, enterrar ilusões, buscar amores? Para que servem os bares senão para o luto, o escárnio, a celebração, o canto, o grito, o desafogo, o cinismo, a luxúria, a explosão – mil e muitos tons de dor, cores e festa?”.
“Bares são também o lugar da sedução, dos preâmbulos, da solenidade, da leveza, dos rompantes, dos finalmente. É pra lá que vão os cultos, os incautos, os bravos, os silentes, os insones, os valentes, os salientes. E também as virgens, os artistas, cafetões e prostitutas – todo tipo de santo e diabo...”
“Bares existem desde sempre. São partículas da alma humana, essência dos mortais que já nascem no abandono. De Cristo a Shakespeare, García Márquez, Napoleão ou Hitler, quase todo ser vivente quis um bar para buscar poesia, convocar guerras, celebrar triunfos, amargar derrotas, enterrar amores. Dos tormentos existenciais de Sartre e Simone de Beauvoir no Café de Flore às tormentas de criação de Picasso e Camus no Les Deux Magots, ambos em Paris, até as inspirações de Hemingway no La Bodeguita del Medio, em Havana, tudo começa e finda no bar.”
Mirtes continua a dar o tom para orquestrar o texto: “É nos bares da vida que as gentes se embebedam de uns tais etílicos para sossegar a alma, acalentar o corpo, turvar as pernas, embriagar os olhos. E também se lambuzar de sabores nem sempre perfeitos, molhos suspeitos, carnes fartas, delícias exóticas, petiscos raros, brindes impróprios, excentricidades da casa. Ou buscar a saideira, onde tem homem que vira macaco e mulher que vira freira. Vale tudo para agasalhar o estômago frio, saciar as bocas ávidas, preencher o vazio do não sei o quê – matar outras fomes”.
A angústia de não saber se haverá futuro para o ser humano, de ter que viver cada dia como se não houvesse amanhã depois dessa pandemia que tomou conta do mundo, a levou para os versos do poeta francês Charles Baudelaire, Embriaguem-se, que diz: “É preciso estar sempre embriagado. Aí está: eis a única questão. Para não sentirem o fardo horrível do tempo que verga e inclina para a terra, é preciso que se embriaguem sem descanso. Com quê? Com vinho, poesia ou virtude, a esco- lher. Mas embriaguem-se. E se, porventura, nos degraus de um palácio, sobre a relva verde de um fosso, na solidão morna do quarto, a embriaguez diminuir ou desaparecer quando você acordar, pergunte ao vento, à vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo que flui, a tudo que geme, a tudo que gira, a tudo que canta, a tudo que fala, pergunte que horas são; e o vento, a vaga, a estrela, o pássaro e o relógio responderão: 'É hora de embriagar-se!', para que não sejam escravos martirizados do tempo, embriaguem-se, embriaguem-se sem descanso, com vinho, poesia ou virtude, a escolher.”
Os jovens daquela época já passaram dos 60 anos e se aproximam perigosamente dos 70, num tempo em que ser velho pode significar uma sentença de morte, em um arremedo de ditadura e de mentes diabólicas que querem derrubar as conquistas de gerações passadas.
Para dizer também que ela pesquisou com vários amigos homens e todos disseram que estão bebendo mais, na solidão de cada um. Por falar em bar, bebida e música, é preciso lembrar sempre que Benjamim Abaliac, ex-sócio do Chorare, partiu em 2014 sem avisar, abrindo um buraco sem tamanho de saudade. Ainda bem que ele não está mais entre nós para assistir à agonia de um país chamado Brasil.
Nem Moraes Moreira, que foi embora há pouco tempo, mas deixou de herança a música Acabou chorare, que deu nome ao bar e embalou toda uma geração. Partiu também, este ano, Aldir Blanc, “num rabo de foguete”. É com um trecho da letra de O bêbado e a equilibrista, que é quase um hino nacional contra a ditadura, que fecho este texto: “Chora/ A nossa Pátria mãe gentil/ Choram Marias e Clarisses/ No solo do Brasil”.