Ela tem amigos que se trancaram dentro de casa. Pediam tudo via aplicativos. Como se a COVID-19 fosse uma sentença de morte. Esconderam-se do mundo de amigos e familiares. Só recebiam as compras de supermercado e as refeições pelo elevador, que os porteiros encaminhavam para o andar deles. Olha que eles moram sozinhos. De vez em quando, ela telefonava para saber se estavam bem.
Ela tem duas irmãs mais velhas que continuam em plena quarentena. Só deixam a prisão da casa para ir ao médico. Não recebem nem os netos, com medo da contaminação. Sim, elas estão no grupo de risco, por causa da idade e de algumas doenças crônicas, como diabetes, colesterol alto, pressão arterial acima do normal.
Ela viu mulheres aprendendo a fazer bolos, limpando a casa, faxinando até a alma, lavando, passando, desinfetando. Preferiu “maratonar”, como definiu o filho dela, quando via a mãe grudada na Netflix assistindo ao filme japonês Jardim celestial. Ela virava a noite.
Ela até gostaria de ter aprendido a bordar, costurar e a ser exímia dona de casa, para passar esta quarentena de um jeito mais suave. Isolada socialmente por causa da COVID-19, os únicos prazeres da vida dela são escrever, caminhar, encontrar os amigos e tomar vinho em companhia deles, degustando conversas longas, trocando ideias e risadas.
Não teve tempo nem paciência para aprender a fazer tricô e crochê, mas hoje se arrepende de não ter habilidades domésticas. Passada esta pandemia mundial, ela acreditava que nada seria como antes, graças aos sinais do Universo. Acreditava que a simplicidade daria o tom de um mundo menos competitivo, hipócrita e desajustado, onde o lucro é a moeda corrente.
Se sobreviver a esta pandemia, ela promete tentar outros caminhos. Já viveu um tempo até na Serra do Cipó, a 100 quilômetros de BH, essa última cidade onde nasceu, cresceu, teve os seus relacionamentos, estudou, viveu em um emprego formal durante 39 anos, um único filho e projetos e sonhos de uma vida alternativa. Sonhou até com um lugar para passar a velhice com amigos, que teria o sugestivo nome de Aldeia da Sabedoria, mas não deu certo.
Tentou a Serra do Cipó, considerada um paraíso pelos turistas – e apesar de ainda ser um lugar lindo, os humanos a fizeram desistir de lá, pois estão exterminando os rios, jogando bichos mortos, fraldas descartáveis, garrafas de plástico e tudo o que produzem em excesso. Não suportou os incêndios nos lotes, nas flores, capins e cipós do cerrado. O fogo lambendo a Serra do Espinhaço. Não suportou os beija-flores voando sem rumo por causa do fogo.
Voltou para Belo Horizonte e aqui está confinada em um apartamento alugado de dois quartos, sem ver a Lua e as estrelas, como costumava fazer na Serra do Cipó. Aqui, onde mora, a janela de um apartamento dá para a outra do prédio vizinho. Ela escuta tudo o que falam, quando arrastam móveis, quando disparam a descarga do vaso sanitário, tomam banho – e brigam uns com os outros.
Resta-lhe, então, escrever, o que lhe dá vitalidade, força e alegria. Quando escreve, liberta os pássaros aprisionados dentro dela. Quando escreve, solta labaredas, incendeia a alma, sem causar estrago a ninguém e a lugar algum. Quando escreve faz faxina nos pensamentos, limpa as quinas do coração. Quando escreve pode dizer que a natureza é Deus, e que as florestas são templos.
Quando escreve, reza sem professar nenhuma religião, se abastece, se embriaga de sentimentos profundos, dá vazão aos seus oceanos internos. Quando escreve, borda e faz crochê com as palavras. Tece o que há de melhor em si. Voa alto, sem alçapões, gaiolas, sem correntes, sem a hipocrisia e a soberba de um mundo velho.
Ela até acreditava que passada a pandemia haveria chance de um mundo mais simples, ameno e generoso. Bastou abrir as portas da flexibilização para uma explosão de gente correr atrás de um mundo velho e ensandecido.
Ela se lembrou da Nau dos Insensatos, do Navio dos Loucos, na época de outras epidemias e pragas. A loucura em estado puro, uma sociedade delirante.
Como disse Roberto Romano, professor de ética. Houve o estrondo da boiada, comandada por um Messias que sabe de cor sobre a ética da morte.