Jornal Estado de Minas

CORAÇÃO DE MÃE

No embalo de James Taylor

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De repente, me vi com 23 anos ao ouvir James Taylor cantando You’ve got a friend. Enviado por um amigo histórico, daqueles cuja amizade está ficando tão velha quanto nós dois, o vídeo me fez esquecer que tenho 66 anos.


Como nos filmes das décadas de 1970, entrei na máquina do tempo ao ouvir James Taylor cantando “você tem um amigo para iluminar até suas noites mais sombrias. Apenas chame meu nome e eu irei correndo”.

De repente, esqueci que passei dos 60 anos. Me senti livre, sem amarras, sem obrigações, sem contas a pagar, sem crédito ou débito com a vida, sem juros nem correção monetária. Eu podia andar pelas ruas sem lenço e sem documento até chegar ao Saloon, o meu “Bar Don Juan”, para encontrar esse amigo e tomar Campari com água tônica.

A bebida vermelha borbulhava dentro de mim, e então eu sonhava com o fim da ditadura que mostrava suas garras. Mergulhava em copos de menta e de bloodmary, o coquetel de vodca com suco de tomate, uma forma instantânea de chegar ao paraíso.

A música de James Taylor me resgatou no tempo em que o inimigo era um só – o regime militar, com suas artimanhas de AI-5, censura e escuridão nos porões da tortura. Sem empunhar armas, sem subir o Araguaia para fazer guerrilha, a gente conversava e conversava e sonhava.


De repente, a utopia dos anos 1970, palavra mágica e poderosa para acabar com os desmandos. Palavra esquecida no dicionário contemporâneo, sob ameaça constante de outras ditaduras, arbítrios e descalabros.

De repente, esqueci os fantasmas e pensamentos complicados, que vão e voltam batendo nas quinas do meu ser. James Taylor me levou para outro tempo. Acabara de me formar em jornalismo na UFMG, em plena ditadura militar. Meus sonhos estavam todos intocados.

Também ouvia Beatles, mas amava muito mais os Rolling Stones. Curtia Chico Buarque cantando “quem é essa mulher que canta sempre esse estribilho? Só queria embalar meu filho, que mora na escuridão do mar”, em referência a Zuzu Angel, mãe de Stuart Angel, que depois de ser preso e torturado jogaram o corpo dele no mar, sem deixar pistas. Sem culpa nenhuma diante daquela mãe torturada pelo desaparecimento do filho.

De repente, esqueci as marcas que o tempo foi fincando em cada parte do meu corpo, dos olhos que já não enxergam mais tão bem. Fui correndo consultar o Almaque dos anos 70 – presente de Bárbara, filha de Bety Huebra, outra amiga histórica – e de autoria de Ana Maria Bahiana, com letras minúsculas, difíceis de ler para quem está envelhecendo.



A música de James Taylor lembrou-me de que quase já não tenho mais amigos homens como antes, que fui selecionando até as amigas, que hoje são poucas, mas fiéis.

Corri para a casa dessa amiga histórica, que insiste em fazer parte da minha vida e eu da dela. Ela morava a poucos quarteirões da minha casa. E lembrei-me de que sem computador, sem WhatsApp, sem tablet ou celular, a gente se correspondia por bilhetes. Um caderno era o símbolo da amizade.

Eu escrevia e ela respondia no mesmo caderno, repleto de festas, namoros, projetos e desejos. Duas das irmãs dessa amiga estavam presas por integrar o movimento contra as forças militares e, muitas vezes, assisti aos policiais invadindo o apartamento da família dela para vasculhar livros, derrubar estantes, abrir gavetas à caça de alguma pista que pudesse comprometê-las. Hoje, essa amiga é mãe da mãe dela, que acaba de completar 94 anos.

A música You’ve got a friend me levou aos inconfundíveis anos 1970, resgatou minhas emoções. “Tudo o que você tem a fazer é me chamar e eu virei correndo para te encontrar novamente”, eu repetia a frase da música uma, duas, 20 vezes.



A guerra era outra. Com 23 anos, achava que iria mudar o mundo com minhas reportagens sobre as mulheres. Sentei nas escadarias da Igreja São José para protestar contra o assassinato da socialite mineira Ângela Diniz por Doca Sreet, em Búzios, no Rio. “Quem ama não mata”, era o grito de protesto e dos cartazes da época. Movimento reeditado agora por velhas guerreiras contra o feminicídio, ou melhor, a caça às mulheres.

Fui para a rua muitas vezes assinar o manifesto de um professor que pedia o fim da ditadura e depois foi preso, trocado por um embaixador e que nunca mais deu notícias nem mandou lembranças.

Lembrei-me de Rita Lee, com os Mutantes, numa banheira de espuma. A música me despertou, mas tive que voltar à dura realidade de que meus ídolos também estão com os cabelos brancos. Muitos já passaram dos 70, mas continuam trabalhando, compondo, cantando e dançando, para mostrar que essa geração aguenta o tranco, pois foi capaz de mudar comportamentos e agora propõe a revolução da velhice. Quer viver mais e ativamente. Afinal, foi a nossa geração que disse um basta à mesmice, ao anteontem das coisas.

James Taylor me acordou para um tempo de acampamentos organizados e selvagens, de natureza, de festas com luz negra para iluminar os tênis brancos, que não podiam ser lavados. Obrigada, James Taylor, por me lembrar dos incríveis anos 1970, quando o pôster de Che Guevara enfeitava a parede do meu quarto e provocava revolução no meu ser inquieto e rebelde, qualidades intocáveis da juventude.



Obrigada, amigo, por sacudir os meus 66 anos e lembrar que ainda dá tempo de “chamar alto o seu nome, quando aquele antigo vento norte começar a soprar”, como embala a música de James Taylor – também já revelando rugas e cabelos brancos.

Ainda dá tempo de saber que tenho um amigo para tomar vinho, comer sushis, sashimis e, quem sabe, lembrar dos tempos da macrobiótica, que a nossa geração inaugurou com maestria. Assim como tomar banho de cachoeira e fazer sexo fora do casamento. Uma geração que virou tudo de pernas para o ar, que protestou contra a guerra do Vietnã, que instaurou a contracultura.

Ainda dá tempo de reeditar as boas lembranças, mas principalmente viver novos e saborosos momentos. Ainda dá tempo. Afinal, é preciso caminhar pra frente, mas que é bom lembrar, ah, isso é. “Lembrar se for preciso, esquecer jamais”, só para citar um velho slogan contra a ditadura militar – está na hora exata de relembrar a escuridão que se fez sobre o país.

* Crônica da jornalista Déa Januzzi escrita em 15/9/19. Homenagem do Bem Viver à nossa colaboradora que morreu em 4/11/20