A Associação Brasileira de Imprensa clamou por uma ação da Procuradoria-Geral da República (PGR) diante dos insultos proferidos por Jair Bolsonaro contra a jornalista Patrícia Campos Mello. Simultaneamente, vozes diversas pediram ao Facebook a remoção das ofensas contra a mesma jornalista oriundas do deputado Eduardo Bolsonaro e de uma testemunha que lhe ofereceu a sujeira em depoimento ao Congresso. A primeira solicitação faz sentido. A segunda é um equívoco e, secundariamente, uma prova de infinita ingenuidade.
O modelo de negócio do Facebook baseia-se na promoção de correntes de ódio e na difusão de fake news. Delira quem nutre a esperança de que a empresa se policie. O único remédio é seu enquadramento como veículo de imprensa, o que implicaria possibilidade de responsabilizá-la judicialmente, na forma da lei.
Mas, nesse caso específico, os ataques deram-se numa CPMI parlamentar, o que os torna notícia de interesse público. Assim, solicitar sua remoção da rede social equivale a pedir censura – e, pior, atribuir ao Facebook o poder de “Grande Censor”.
Já o “episódio triste” (Rodrigo Maia) das ofensas presidenciais situa-se em esfera distinta. O silêncio do procurador-geral indica que, como Davi Alcolumbre, ele pretende encará-lo como “página virada”, uma evidência do quanto já avançou o Executivo no propósito de quebrar a independência do Ministério Público. As frases boçais do presidente configuram dois crimes catalogados: injúria e difamação. A PGR foge ao seu dever constitucional ao fingir que nada ouviu.
Num país sem censura prévia, a palavra encontra limite na punição prevista em lei. Mas, desde sempre, nosso sistema de Justiça tende a ignorar a lei quando se trata da palavra criminosa de políticos com cargo.
Nos tempos áureos das milícias intimidatórias lulistas, um deputado do PT da Bahia rotulou-me nas redes como “racista” para incitar militantes a melar um debate do qual eu participava na Festa Literária de Cachoeira. Advogados convenceram-me da inutilidade de processar o patife, escondido no buraco da imunidade parlamentar.
Políticos ofendem cidadãos comuns à sombra da prevaricação ritualizada de procuradores e juízes. Dias atrás, Rosa Weber extinguiu a interpelação do jornalista Glenn Greenwald a Bolsonaro, que o difamara e ameaçara de prisão. A ministra do STF acatou servilmente a alegação presidencial de que exercitava o “direito constitucional de livre manifestação do pensamento” num mero “discurso político”. São exatamente os pretextos que usaria para o caso de Patrícia Campos Mello, na hipótese improvável de que o procurador-geral Augusto Aras ensaiasse um gesto de cumprimento da lei.
O limite legal da palavra, alternativa democrática à censura, vale para os cidadãos comuns, mas, aparentemente, não para os “incomuns” – isto é, os que têm cargos políticos. O certo seria valer para todos, mas não linearmente. O princípio da igualdade perante a lei solicita o tratamento desigual dos desiguais. Autoridades públicas detêm prerrogativas especiais, como as de editar leis, ordenar investigações ou mandar prender. Daí que, quando praticado por autoridades, o crime de ofensa merece punição maior.
Não é o que pensam Aras e Weber. Na sua doce leniência, os dois refletem a herança multissecular brasileira de supremacia do Estado sobre a sociedade civil. O mandonismo do “coronel”, a truculência do agente estatal, o sequestro da lei para benefício da elite política, o desprezo pela cidadania – todos esses traços antiliberais de nossa formação histórica encontram-se sintetizados na dupla omissão.
De curioso, aqui, há o aplauso dos “liberais bolsonaristas” (expressão que condensa uma falácia lógica) à violação estatal dos direitos dos indivíduos. Os leninistas da direita invejam e imitam os leninistas originais, da esquerda.