Jornal Estado de Minas

DIREITO E INOVAÇÃO

A hipervulnerabilidade do consumidor no ambiente digital

No artigo 170 da nossa Constituição encontramos os princípios que regem o exercício da atividade econômica. Se de um lado ele abarca a promoção de uma economia de mercado, de outro suas normas também buscam assegurar garantias sociais. A presença de princípios tidos como liberais (livre iniciativa, propriedade privada e livre concorrência) ao lado de outros de caráter mais social (valorização do trabalho humano, justiça social, função social da propriedade e defesa do consumidor e do meio ambiente) deixa isso claro.





Dessa forma, a criação e a interpretação das leis para nosso convívio em sociedade devem seguir uma ponderação harmônica destes princípios. Diante das circunstâncias, um ou outro poderá ganhar maior peso.

É o que ocorre nas relações de consumo. O legislador reconhece o consumidor como a parte mais fraca e pode criar regras que compensem este desequilíbrio. Para isso, o Código de Defesa do Consumidor reconhece de forma expressa e como um de seus princípios a vulnerabilidade dos consumidores no mercado.

Na doutrina, já é tradicional a classificação desta vulnerabilidade em seus aspectos técnico, jurídico, informacional e socioeconômico. O consumidor, comumente, não possui conhecimento específico sobre o produto ou serviço que vai adquirir (vulnerabilidade técnica), sobre as normas legais que se aplicam àquela relação (vulnerabilidade jurídica), nem sobre todas as circunstâncias em torno de uma determinada transação (vulnerabilidade informacional). Além disso, fica sujeito a um maior poder econômico de um fornecedor (vulnerabilidade socioeconômica).





Um contrato assinado de livre e espontânea vontade pode ser revisto judicialmente se nele forem identificadas cláusulas abusivas, ou seja, que não respeitam essa vulnerabilidade.

Esse é o sistema do nosso Código, aplicado desde a década de 1990, quando entrou em vigor. De lá para cá, visando-se uma adequação às alterações sociais e tecnológicas, seu texto sofreu diversas mudanças.

Hoje, porém, diante de uma nova conformação decorrente da sociedade da informação em que vivemos, na qual os dados passaram a apresentar um valor essencial para o desenvolvimento pessoal. Nela há uma nova equação entre fornecedor e consumidor imposta pelas transações no meio digital.

O conhecimento dos custos de uma operação tradicional de compra e venda, por exemplo, deu lugar a um fornecimento de dados pessoais que expõe o consumidor a riscos diversos (O crescimento exponencial de golpes virtuais no país ilustra bem este cenário).





Por isso, aponta-se hoje na doutrina especializada a existência de uma hipervulnerabilidade do consumidor. Segundo Bruno Bioni, especialista em proteção de dados, no ambiente digital houve um aumento do fosso da assimetria entre fornecedor e consumidor.

Esse aumento impacta sem dúvida na vulnerabilidade informacional, já que os consumidores, em geral, não têm conhecimento sobre o caminho seguido por seus dados pessoais. Grande parcela deles sequer sabe da ocorrência dessa prática de coleta de dados em contraprestação ao fornecimento de serviços.

Pensemos no chamado perfilamento do consumidor. Baseando-se em dados como localização geográfica, curtidas e postagens em redes sociais, algoritmos automatizados conseguem traçar um perfil comportamental do consumidor e, por meio de várias técnicas, influenciar na sua escolha de adquirir mais produtos e serviços.





O Código de Defesa do Consumidor prevê que atributos como idade, deficiência e capacidade reduzida de compreensão podem tornar alguns grupos mais vulneráveis.

Em razão disso, eles merecem um tratamento ainda mais diferenciado. Este seria o conceito de hipervulnerabilidade para parte da doutrina. Outros autores, porém, entendem que o ambiente digital coloca todos os consumidores nessa condição e que, em razão disso, a  hipervulnerabilidade tem um caráter objetivo. Como regulá-la, então?
 

A LGPD E A NECESSIDADE DE MAIS REGULAÇÃO

 
Atualmente a nossa lei mais importante para a proteção dos dados é a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13709/18), nossa LGPD. Ela tem como um de seus fundamentos principais a autodeterminação informativa, ou seja, suas regras visam garantir que o titular tenha conhecimento acerca da coleta e do fluxo de seus dados.
 
A LGPD também impõe obrigações aos controladores de dados. Eles devem fundamentar seu tratamento no consentimento do titular ou em outra base legal (coleta de dados para proteção da saúde, por exemplo).
 
Para se adequarem à lei, os fornecedores, então, tiveram que rever seus termos de uso e políticas de privacidade. Logo, para saber como seus dados estão sendo tratados, bastaria que o consumidor os lesse e concordasse com as regras ali contidas.




 
Por experiência própria, sabemos que isso não vem funcionando. As razões são muitas. A complexidade e extensão dos documentos, a quantidade de serviços contratados diariamente e as alterações constantes nos textos. Além disso, estes termos são verdadeiros contratos de adesão: - ou o consumidor aceita o que está ali descrito, ou não poderá usufruir do serviço.
 
Tudo indica, portanto, que essa condição de hipervulnerabilidade do consumidor só poderá ser amenizada com  a criação de novas leis que exijam mais transparência dos fornecedores/controladores de dados.  
 
No último dia 5 de julho, o Parlamento Europeu aprovou novos regulamentos sobre mercados e serviços digitais. A nova legislação que vem sendo por aqui chamada de marco legal das big techs tem o propósito de impor maior controle e transparência à atuação das plataformas digitais, tanto na esfera da concorrência quanto na utilização de dados dos usuários. Para isso, elas serão submetidas a auditorias independentes, permitindo que autoridades e pesquisadores autorizados tenham acesso aos próprios dados e ao uso de algoritmos.

Por aqui, temos adormecido no Congresso o PL 2630/20, que cria a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência (apelidado de PL das Fake News, em razão da sua origem). Ele trata das principais questões envolvendo a atuação das plataformas digitais, dentre elas, o tema da liberdade de expressão.





Para tanto, prevê normas que determinam mais transparência das plataformas e uma espécie de corregulação ou autorregulação de suas atividades. Para a elaboração de seus termos de serviços, por exemplo, as empresas de tecnologia deverão seguir diretrizes fornecidas pelo Comitê Gestor da Internet, órgão criado em 2003 que é composto por representantes dos setores público, empresarial, do terceiro setor e da comunidade científica e tecnológica.
 
No meio jurídico, acredita-se que a aprovação do PL 2630/20  poderá trazer maior proteção ao consumidor nesse contexto em que vivemos, apesar da resistência das grandes empresas de tecnologia.
 
Quem sabe a aplicação da lei europeia sirva de espelho para nosso legislador.

  • O autor desta coluna é Advogado, Especialista e Mestre em Direito Empresarial. É sócio fundador do escritório Ribeiro Rodrigues Advocacia

  • Sugestões e dúvidas podem ser enviadas para o e-mail lfelipe@ribeirorodrigues.adv.br