Após quase um ano e meio da entrada em vigor da Lei 14181/21, conhecida como Lei do Superendividamento, já é possível fazer uma análise, ainda que inicial, sobre sua aplicação.
Apenas para relembrar, trata-se da lei que alterou o Código de Defesa do Consumidor e o Estatuto do Idoso para inserir neles normas sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento, fenômeno que pode ser entendido como a ruína financeira de uma pessoa física decorrente de dívidas de consumo.
Segundo seu texto, entende-se por superendividamento a impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação.
Buscando dar-lhe efetividade, Ministério Público, Defensoria Pública, Procons e Tribunais têm realizado parcerias e programas para atender os consumidores que se encontram nesta situação.
É o caso, por exemplo, do Programa de Atendimento do Superendividado (PAS), desenvolvido junto ao CEJUSC (Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania) de Belo Horizonte que oferece um procedimento pré-processual de repactuação de dívidas.
Já o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) lançou uma cartilha sobre o tema com orientações importantes para todos os envolvidos (consumidores, advogados, juízes e outros).
Esses projetos têm um caráter mais informativo e os procedimentos criados com eles buscam soluções para os consumidores por meio da negociação extrajudicial com os credores.
Mas se a situação de um consumidor superendividado não é resolvida, o caminho que lhe resta é o processo judicial de repactuação de dívidas, previsto pela lei.
O procedimento, que se assemelha em alguns aspectos a uma recuperação judicial, também já vem tramitando em diversos tribunais do país.
Por meio dele, o consumidor pode requerer uma audiência de conciliação com todos seus credores e nela apresentar uma plano de pagamento de sua dívida.
Se houver um acordo com os credores, ele se tornará um título executivo. Não sendo possível uma composição, caberá ao juiz determinar uma repactuação das dívidas e estipular um plano compulsório a ser seguido pelos credores.
Em uma breve consulta nos sites de alguns tribunais não encontramos, ainda, planos de pagamentos definidos em comum acordo com os credores ou estipulados de forma compulsória pelos Juízes.
Alguns consumidores, porém, têm conseguido liminares para suspender a cobrança de suas dívidas ou para limitar a margem dos descontos em folha ou em conta corrente.
E dois pontos chamam a atenção sobre os critérios adotados pelos julgadores nestas decisões.
O primeiro deles é a limitação de 30% dos rendimentos do consumidor, mesmo que as dívidas não se refiram a créditos consignados, entendimento, portanto, contrário ao posicionamento recente do STJ sobre o tema.
O segundo é que o percentual definido por como mínimo existencial pelo governo não vem sendo seguido.
Foi o que ocorreu, por exemplo, em uma decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal. Ao solicitar a repactuação judicial de suas dívidas, uma consumidora argumentou que a soma das parcelas de seus empréstimos comprometia 90% de seus rendimentos líquidos. Solicitou, então, uma liminar para reduzir essa margem para 30%.
Após ter seu requerimento negado em primeira instância, obteve sucesso no Tribunal. Assim se manifestou a desembargadora que julgou o recurso apresentado: “Por certo, a limitação dos descontos a 30% (trinta por cento) dos rendimentos auferidos pela mutuária se mostra suficiente para assegurar-lhe o mínimo existencial, preservando a sua dignidade como pessoa humana e, ao mesmo tempo, permite o cumprimento da obrigação assumida, ainda que por prazo mais alongado”
Em outro caso, julgado pela justiça paulista, o juiz de 01° grau concedeu uma liminar a uma consumidora, também para que os descontos fossem limitados a 30% de seus rendimentos. Ao julgar recurso apresentado por um dos credores, o Tribunal manteve a decisão. Para os desembargadores, é cabível a concessão da liminar antes da audiência com os credores, se o consumidor comprovar o comprometimento de sua renda.
Vale destacar que, em ambos os casos, as autoras das ações, quando a ajuizaram, já apresentaram um plano de repactuação das dívidas, como exige a lei. Sem ele, dificilmente, obteriam sucesso em seus pedidos.
Resta aguardarmos o julgamento definitivo destas e de outras ações para, enfim, podermos aferir a real eficácia deste importante e (ainda) novo procedimento de repactuação de dívidas.
Os processos citados podem ser consultados nos sites dos tribunais (0730625-72.2021.8.07.0000 e 1015770-13.2022.8.26.0562)
O autor desta coluna é Advogado, Especialista e Mestre em Direito Empresarial.
Sugestões e dúvidas podem ser enviadas para o email lfelipe@ribeirorodrigues.adv.br