A regulação da internet precisa ser revista. Isso, hoje, é quase um consenso entre governos, juízes, políticos e usuários, mundo afora. A questão é como fazer. Os problemas do universo on line são facilmente identificados. Desinformação, discursos de ódio, tratamento indevido de dados, circulação de bens e serviços ilegais, oligopólio das plataformas digitais, dentre outros.
Não há, porém, um acordo sobre como resolvê-los. Qualquer iniciativa de regulação esbarra em uma tensão entre valores. Liberdade de expressão e censura, retrocesso e inovação, intervenção estatal e livre concorrência.
Leia Mais
ANPD publica norma sobre dosimetria de penasO sucesso e as polêmicas do ChatGPTA regulação das apostas no BrasilDe quem é a responsabilidade pelo crédito responsável?O que nos diz a briga entre editoras e uma biblioteca onlineQual o melhor hambúrguer do mundo?A regulação dos serviços por aplicativosRecentemente, a Advocacia-Geral da União anunciou a criação de uma procuradoria de defesa da democracia. A medida, que teve como pano de fundo, os atos golpistas de 8 de janeiro, visa combater a desinformação no âmbito de políticas públicas.
Críticas não faltaram. Muitos consideraram a medida autoritária, já que ela pode permitir que o poder executivo, defina, de forma ideológica, o que é verdade ou não.
No início do ano, o governo também cogitou editar uma medida provisória redigida pelo Ministério da Justiça para coibir conteúdos golpistas nas plataformas digitais. Após divergências entre os poderes e críticas, a ideia acabou sendo abandonada.
A atuação do judiciário, bastante incisiva durante as últimas eleições, é também alvo de críticas principalmente em razão de uma possível afronta ao princípio da separação de poderes.
E o que dizer de uma renovação legislativa sobre o tema pelo parlamento? As principais leis que regem o ambiente digital atualmente são a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e o Marco Civil da Internet (MCI) que devem ser aplicadas em conjunto com a Constituição Federal.
Neste ano o STF poderá julgar a constitucionalidade do artigo 19 do MCI. Nele é tratada a responsabilidade das plataformas pelos conteúdos nelas postados. Segundo o artigo, “Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário”.
Ao analisar dois recursos com repercussão geral (Res 1037.396 e 1.057.258), o Supremo poderá definir se há hipóteses em que os provedores são obrigados a retirar determinado conteúdo após uma simples notificação do usuário, sem a necessidade de se recorrer ao judiciário. Para tanto, foi marcada para o dia 28 de março uma audiência pública para discutir a matéria.
Vale lembrar, também, que permanece no congresso aguardando aprovação o PL 2.630/20, popularmente chamado de PL das fake news, que cria regras para a moderação de conteúdo nas plataformas. O governo atual já sinalizou a intenção de aproveitar o projeto.
Enquanto isso, lá fora, há dois movimentos bem relevantes. Na Europa, já estão sendo implementados o Digital Services Act (Ato dos Serviços Digitais) e o Digital Markets Act (Ato dos Mercados Digitais), marcos regulatórios que trazem diretrizes para a regulação do ambiente digital no continente.
Em resumo, os atos têm regras para combater a desinformação, exigir transparência da publicidade online e responsabilizar as empresas pelos conteúdos publicados pelos usuários. Outras normas buscam combater o oligopólio das cinco grandes empresas de tecnologia (Google, Amazon, Apple, Meta/Facebook e Microsoft).
No mês passado, diversas plataformas entregaram à Comissão Europeia dados sobre o número de usuários que acessam seus serviços. Os dois atos entrarão em vigor, por completo, em 2024.
Já nos Estados Unidos, teremos um importante julgamento da Suprema Corte que poderá mudar o rumo da regulação por lá e refletir no mundo todo.
Trata-se de uma possível revisão da Seção 230 da chamada Lei da Decência nas Comunicações, existente desde 1996. De acordo com a lei, os provedores de conteúdo e de hospedagem (Google, Facebook e outros) não podem ser legalmente responsabilizados pelas postagens dos seus usuários. Há uma imunidade total, diferentemente do que prevê nosso Marco Civil da Internet.
Isso pode mudar em razão de uma ação ajuizada pela família de uma das vítimas do tiroteio ocorrido em 2015 na casa de shows Bataclan em Paris. Os pais de Nohemi Gonzalez pedem a responsabilização da Google pela morte da filha, sob o argumento de que os assassinos foram influenciados por vídeos com conteúdo radical sugeridos pelo algoritmo do Youtube.
As grandes empresas de tecnologia, certamente, são refratárias a qualquer inovação legislativa que lhe possa imputar mais responsabilidade, diminuir sua participação no mercado ou colocar em xeque seu modelo de negócio. Defendem, por exemplo, a liberdade de expressão, a proibição da censura e a inovação tecnológica.
É necessário, portanto, que estas alterações sejam precedidas por debates entre todos os envolvidos para se encontrar formas de conciliar valores e interesses aparentemente conflitantes.
Há duas semanas, iniciou-se uma conferência mundial promovida pela Unesco com este propósito: estabelecer e implementar processos regulatórios que preservem a liberdade de expressão, o acesso à informação e os direitos humanos. Resultado dela é a criação de um documento com diretrizes para regulamentar as plataforma digitais. Ele estará aberto para receber contribuições de todos os envolvidos no acesso à internet. Governos, especialistas, influenciadores digitais, empresas e sociedade civil.
Enfim, podemos esperar que o ano de 2023 seja marcado por importantes mudanças no ambiente on line que poderão repercutir para todos nós.
- O autor desta coluna é Advogado, Especialista e Mestre em Direito Empresarial. É sócio da Empresa Tríplice Marcas e Patentes
- Sugestões e dúvidas podem ser enviadas para o e-mail lfelipeadvrr@gmail.com