Por Hudson Cambraia
Estamos relativamente próximos do dia internacional da visibilidade trans, comemorado no dia 31 de março. A data em questão foi idealizada em 2009 pela ativista Rachel Crandall-Crocker, atuante em Michigan, EUA.
A data tem finalidade informativa e educativa, no sentido de conscientizar para o fato de que as pessoas transgênero existem e que o respeito a elas faz parte do grande tema relativo ao respeito à dignidade humana. Parece simples, mas a necessidade de uma data é indicativa de que a questão é mais complexa do que parece.
Um parêntesis necessário: tudo que precisa de data é porque tem um problema. Repara bem e você vai perceber que todas as datas “dia de X” escondem uma montanha de complexidades e desrespeitos históricos e contínuos. Basta pensar no dia da mulher, dia do índio, dia da consciência negra, dia nacional das tradições das raízes de matrizes africanas e nações do Candomblé (que por sinal, foi ontem, dia 21/03) e etc. A lista vai longe... mas em todos os casos o padrão é o mesmo e vale a regra: se tem placa, tem história. E, no caso, a história nunca é boa.
Retomando: Neste cenário, é preciso observar que o Deputado Federal Nikolas Ferreira é um dos grandes expoentes da parcela da sociedade que, abertamente, combate toda e qualquer espaço de visibilidade, valorização e respeito à comunidade LGBTQIA+. Recentemente, houve grande polêmica no dia da mulher quando o parlamentar subiu ao parlatório da Câmara dos Deputados para discursar contra a comunidade transgênero sob o argumento de defesa das mulheres “de verdade”.
Imediatamente houve grande reação, especialmente liderada por representantes da esquerda política, para condenar com veemência a ação do parlamentar. Houve até representação no Conselho de Ética da Câmara e ação perante o Supremo Tribunal Federal, ao argumento da prática do crime de transfobia.
Mais um parêntesis necessário: essas expressões transfobia, homofobia, gordofobia e etc estão ridiculamente erradas e eu não entendo o porquê de ninguém nunca ter questionado isso. O sufixo “fobia” está vinculado a uma condição clínica relativa a um medo generalizado e paralisante relativo a alguma coisa. As crianças não vão lembrar, mas na década de 1990 fazia sucesso na sessão da tarde o filme “Aracnofobia”, que tratava de uma invasão maluca de aranhas mortais e que dava um baita medo.
Logo, fobia é sinônimo de medo e, definitivamente, as condutas classificadas como transfobia, homofobia e etc não possuem qualquer relação de medo. Entretanto, considerando que muito provavelmente o impacto deste questionamento será nenhum, sigamos com a nomenclatura “errada” para manter o entendimento.
Retomando: antes de entrar no mérito da análise da conduta do parlamentar, é preciso destacar que os representantes da esquerda demonstraram uma incoerência na reação à conduta do Deputado que merece ser questionada. Isto porque, historicamente, os representantes da esquerda política têm a tendência de avaliar condutas tidas como criminosas a partir da perspectiva do autor da conduta, como uma forma de humanizar a resposta estatal.
Assim, um furto não pode ser reduzido ao simplismo de se analisar que alguém subtraiu, dolosamente, para si ou para outrem, coisa alheia móvel, como dispõe o art. 155 do Código Penal. Para esse viés, é preciso entender que, antes da análise da subtração, deve-se observar a análise da realidade social do agente, a desigualdade social em que o mesmo está inserido, a sua vulnerabilidade social e tantos outros itens.
Não por outro motivo, é muito bem aceita e circula com facilidade nos meios jurídico-acadêmicos a teoria da coculpabilidade, de autoria do jurista Eugênio Raul Zaffaroni (que foi juiz argentino, membro da Suprema Corte Argentina, mas que conhece mais de Direito Penal e Processual Penal Brasileiro que muito jurista por estas terras...). E o que diz esta teoria da coculpabilidade? Em síntese (e já peço desculpas pela singeleza aos preciosistas criminalistas de plantão), a teoria estabelece que o correto, quando da aplicação de uma pena criminal, é avaliar se a culpa do agente criminoso não deveria ser dividida com o Estado e a sociedade.
Daí o prefixo “co”, que significa “junto”, de modo que o Estado e a Sociedade seriam culpados juntamente com o agente criminoso pela sua negligência em face da pessoa (que culminou com a prática do ato punível). Neste contexto, se uma pessoa vulnerável, por qualquer razão, agiu de forma ilícita porque o Estado e a Sociedade falharam em receber esta pessoa no meio social, então a pena deveria ser dividida entre o agente criminoso e o Estado.
Terceiro parêntesis: viu como os prefixos, sufixos e radicais são importantes? Usei essa teoria de propósito só para falar desse prefixo. Há outras tão legais quanto, mas as outras não têm um prefixo para eu validar o questionamento acima. Além disso, o Zaffaroni é muito legal, vale a pena conhecer.
Retomando: E se esta premissa é verdadeira, por uma questão de coerência, não é possível escolher quem vai ter a sua conduta avaliada a partir da sua realidade social e quem não vai. Até porque fazer isso implicaria na incoerência de dizer que existem seres humanos menos protegidos pelo direito do que outros, o que não faz o menor sentido.
Obviamente, a própria teoria estabelece que o grau de coculpabilidade do Estado e da sociedade vai variar em cada caso. Não é sempre 50/50! Pode ser 70/30, 80/20 ou 100/0. O fato é que essa perspectiva antropológica deve sempre ingressar na realidade do julgador.
E como aqui estamos falando da interface entre direito e política (aquela zona gris onde ninguém se entende), é preciso ponderar que este julgador tanto será o representante do Poder Judiciário quanto todos os demais atores políticos quando do julgamento político do Deputado.
E é aí que entra a tônica do título deste singelo pensamento... Antes de analisar o que o Deputado fez, é preciso entender e buscar compreender quem o Deputado é. Em uma rápida pesquisa sobre manifestações do próprio, é possível perceber que o Deputado nasceu e cresceu em um ambiente cristão de grande rigidez.
Nesses ambientes, a realidade é exatamente como o Deputado a expõe: a Igreja e a Bíblia são interpretadas sem contextualização histórica (isto é, considerando o texto como atemporal) e os dogmas da Igreja Católica ortodoxa são transpostos de forma ainda mais rígida para parâmetros protestantes.
Curiosamente, o Deputado é integrante da Igreja Bola de Neve (sim, esse é o nome da agremiação religiosa), que tem um visual “descolado” e uma ambientação toda pensada para o “agrado” do jovem. Entretanto, as premissas religiosas são tão flexíveis quanto as da Opus Dei, de modo que é preciso compreender a realidade com que o Deputado cresceu e convive até hoje.
Além disso, em mais de uma oportunidade, o Deputado declarou expressamente que não tem vida sexual ativa, reservando-se ao grupo de pessoas que opta por ter relações sexuais apenas após a celebração do casamento. Ou seja, há um franco repúdio a qualquer manifestação de liberdade sexual como sinônimo de pecado. Este contexto é ainda permeado pela ideia de que o conceito de família é rígido, no sentido de que a família é a expressão e veneração da sagrada família, composta por José, Maria e Jesus.
Nesta perspectiva, a sagrada família é única e formada por seres desiguais, mas todos santos entre si, de modo que a todos se deve reverência (centralizada, obviamente, na figura de Jesus). A partir desta lógica, tem-se que a alteração desta modelagem de família é, em último caso, a subversão ou violação do legado modelar deixado pela sagrada família, o que implica em pecado e afronta ao próprio Deus.
Esse modo de interpretar e viver no mundo ainda implica na impossibilidade de igualdade entre esses membros da família. A igualdade entre homem e mulher aqui implica na violação das funções sagradas atribuídas a cada um dos seus membros, o que torna explicável a compreensão sobre a necessidade de submissão da mulher ao marido e o absoluto repúdio a toda a pauta feminista.
Veja-se que, ao fim, o Deputado Nikolas Ferreira é coerente com o mundo que ele cresceu e vive. Ele expressa tudo aquilo que ele é, goste você ou não dele e do que ele expressa.
Você deve estar pensando agora: e o que faz dele vítima, como eu sugeri no título do texto?
E eu te respondo: ele é vítima da falta de adequada informação social de que o mundo não é uma bolha uniforme e monocromática.
Ele é vítima da nossa incapacidade de entender que o mundo é imensamente mais complexo do que nosso microcosmo limitado é capaz de absorver. Ele é vítima da nossa incapacidade de furar bolhas e fazer o que Jesus Cristo fez na sua passagem pela terra: ir ao encontro do diferente, do que me assusta, do que causa revolta, do disforme, do doente, do marginal e do degredado.
Ele é vítima de uma sociedade que pauta a conduta do outro pela sua o tempo inteiro e quer que a sociedade inteira, em toda a sua complexidade, seja reduzida à sua própria visão de mundo. Somos um grupamento de pessoas que não quer conviver no mundo, mas sim quer que o mundo se curve e se dobre à própria vontade para que o mundo inteiro caiba em si.
Sim, estou falando de todos nós. Eu, você e o Deputado somos incapazes de entender, de forma natural, que o mundo não é como eu quero e as pessoas não vão agir ou ser no mundo como eu gostaria, mas sim como elas mesmos querem. Eu, você e o Deputado somos incapazes de reconhecer a nossa pequenez no mundo e agir de tal forma a criar mecanismos de convivência entre o que me apraz e o que não me apraz.
Eu, você e o Deputado somos vítimas de uma forma maniqueísta de pensar que só admite a existência de certo e errado, bom e mau, santo e pecador, sem entender que a vida é muito mais complicada do que uma chave que se vira para um lado ou para o outro. Antes de condenar o Deputado, precisamos entender qual foi o contexto que fez com que ele tivesse voz.
E ouso dizer que o contexto é a inexperiência do outro. Ouso dizer que o Deputado nunca teve a oportunidade de conviver com um membro da comunidade LGBTQIA para descobrir (e seria com grata surpresa) que são pessoas comuns, com interesses comuns e sem absolutamente nada de diferente dele mesmo. É gente que estuda, trabalha, paga boletos e reclama do governo.
Ouso dizer que ninguém (ou muito poucas pessoas) da comunidade LGBTQIA se disporia a conviver com o Deputado para conhece-lo por detrás das câmeras, fora do cenário de embate e do like, desarmado (em todos os sentidos), para descobrir que talvez ele seja muito menos do que a gente imagina. Ouso dizer que talvez ele (como todos nós) seja apenas desinformado do outro e se alimenta (e alimenta a própria realidade) a partir da repetição da visão da própria bolha.
E sabe o que a gente faz com o que não conhece? Desumaniza, afasta, agride e mata. Os Europeus fizeram isso nas suas colônias; nós fizemos isso com nossos indígenas; nós ainda fazemos isso com a comunidade LGBTQIA . Não tem diferença, a não ser a do contexto histórico, pois a tônica é sempre a mesma: o que se desconhece é, automaticamente, classificado como perigoso e digno de ser repelido.
A diferença agride, em última instância, o conforto e a segurança da sensação de estabilidade e permanência que a nossa própria realidade alimenta em nossa mente. Saber que alguém pode ser diferente expõe a minha própria limitação de ser algo diferente do que sou hoje. E isso assusta. As vezes apavora, mormente quando não se tem total segurança sobre o que se é no mundo.
A agressividade das manifestações do Deputado é muito típica desse desconhecer. E aí eu te convido a fazer esse raciocínio as avessas. Ou seja, qual comportamento seu replica o que o Deputado fez? É sua visão sobre o morador do interior? Sobre bolsominion? Ou quem sabe sobre o empresário? Talvez sobre a Polícia? Vá saber não é o PT? Ou qualquer político de forma generalizada! Qual é o seu objeto de voracidade ao sabor “Nikolas Ferreira”?
O Deputado é só um sintoma de algo muito maior e muito mais grave do que o Deputado em si. É preciso entender que ele não é ele, mas um grupo imenso de pessoas que o elegeu e que estão por aí ao nosso lado e muito provavelmente pensam e agem como ele (só que sem aparecer na televisão).
Talvez melhor do que classificar o Deputado como inimigo público seja olhar para o lado e criar o hábito de observar quantas vezes fazemos exatamente como ele; quantas pessoas ao nosso redor fazem exatamente como ele e a gente não se dá (e não dá ao outro) a oportunidade de superar a ignorância do desconhecido.
A pena do Deputado deve ser abrandada porque a sociedade precisa se responsabilizar por não ter ensinado a ele, e às pessoas que concordam com ele, que todos (sem exceção) têm o direito (assim como ele mesmo) de ser e viver no mundo como acham correto. E se o modo de vida dele é lícito (e indubitavelmente é), também é preciso que fique claro para ele que suas premissas não são únicas e que não é possível impor ao outro (que é tão livre quanto o Deputado) que se paute e se dobre ao seu modo de vida.
O ilícito do Deputado (e eu, particularmente, entendo que há ilicitude) não está no desprezo a um modo de vida diferente do seu. Precisamos reconhecer que todo mundo faz isso. Inclusive eu faço isso em relação ao Deputado e desprezo de forma veemente o modo de vida dele.
A questão é que o meu desprezo não se convola em uma tentativa de impor ao Deputado o meu modo de vida, de tal forma que me reservo ao direito de discordar e não compactuar, reconhecendo que ele tem o direito e a liberdade de viver como entende justo e adequado. Por isso, o ilícito dele está na tentativa de impor ao outro a sua visão de mundo, o seu modo de vida e a sua perspectiva de vida boa.
A vida pode ser boa de muitas formas... de tantas formas que é impossível a uma pessoa sequer conhecer todas as possibilidades que o mundo entrega em uma breve vida humana. É preciso respeitar as divergências e entender que cabe a cada um de nós vigiar com cautela nossos julgamentos para evitar fazer a mesma coisa que julgamos combater na conduta do outro.
Ao Deputado, espero que entenda, com a reação causada, que o Brasil é muito maior do que seus eleitores e suas ideias. Espero que perceba que só é possível conviver (do prefixo “co” que significa “junto”, logo “viver junto”) pacificamente quando a existência do outro for respeitada como ela é e não como eu quero que ela seja. E há espaço para todos, basta que a gente entenda que os meus espaços e a minha vida não precisam ser alterados ou eliminados para que a sua seja viável.