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Estado de Minas DIREITO SIMPLES ASSIM

"Novo" arcabouço fiscal: nome bonito e o mais do mesmo

O discurso em torno do tema é pomposo, mas a realidade por trás é bem menos florida


29/03/2023 06:00 - atualizado 28/03/2023 20:35

Boneco palhaço com chapéu e cabelo volumoso feito de linhas de lã, rosto pintado de branco ao redor da boca e coração desenhado na bochecha e nariz pintado de vermelho.
Nesse circo sem graça nós somos os palhaços tristes (foto: PIXNIO)

 

Por Hudson Cambraia

 

Direito Tributário é daquelas matérias que quase todos os alunos de Direito têm pavor e estudam para passar e ficar livre. Os professores de Tributário são, na maioria das instituições, um dos grandes desprestigiados nas bancas de monografia por falta de público. Ficam abraçados aos professores de Direito Internacional (público e privado), Direito Econômico, Direito Eleitoral e Direito Financeiro.

 

Entretanto, este desprestígio é infundado, pois é uma das matérias mais instigantes do Direito e de maior impacto na vida do cidadão. Talvez apenas seja mal abordada no cotidiano (o que abre um grande flanco para uma mea culpa em momento oportuno...)

 

Fato é que entra governo e sai governo, a primeira pauta a ouriçar jornalistas e especialistas (que normalmente só falam para os seus) é a necessidade urgente de uma reforma tributária. Curioso que eu acompanho a ascensão e queda de governos há quase 10 mandatos e esse negócio é sempre urgente.

 

Atentem-se crianças, não são 10 anos, mas 10 mandatos, a ver: Itamar Franco; FHC 1.0; FHC 2.0; Lula 1.0; Lula 2.0; Dilma 1.0; Dilma 1.5; Temer 1.5; Bolsonaro; e agora Lula 3.0.

 

A grande curiosidade é que, apesar da premente urgência, a tal da reforma nunca sai. E aí a gente vai levando, cambaleando de um lado para o outro, ganhando uns lampejos de esperança em voos de galinha econômicos (e isso nem é piada) e tropeçando aqui e acolá. Vez ou outra sai uma “minirreforma” que quase ninguém vê resultado...

 

Para surpresa de absolutamente zero pessoas, entrou o novo governo e a primeira temática a rondar o noticiário era a necessidade de uma reforma tributária. Aí veio o governo e joga no vento um nome novo (afinal, ninguém quer copiar o coleguinha e correr o risco de perder a exclusividade da paternidade da criança): “novo arcabouço fiscal”.

 

Qual a vantagem? Ninguém entende muito bem que raio é isso e fica mais difícil de discutir.

 

O Ministro da Fazenda vem com umas explicações meio soltas, a imprensa consegue uns vazamentos seletivos, aparentemente de interesse do governo para testar a reação, e os agentes do mercado são questionados sobre as expectativas nutridas com a mudança. Não se pode negar que isso ajuda a render muitas entrevistas.

 

Considerando esse cenário todo, resolvi trazer esta questão aqui com dois objetivos: primeiro, tentar explicar esse negócio para alguém que, talvez, ainda não tenha absoluta clareza a respeito; segundo, tentar te convencer (sem pressão...) que, definitivamente, a proposta está muito longe de ser uma solução para o problema (real).

 

Então vamos por partes. Tentando dar sentido para tudo que tem por aí, o novo arcabouço fiscal nada mais é do que um conjunto de regras e medidas que vai tentar equilibrar as receitas e as despesas governamentais.

 

O leitor mais atento vai se lembrar de ouvir algo parecido com outro nome: teto de gastos. E se você fez essa conexão, já ganhou uma estrelinha!

 

O tal do teto de gastos foi criado pelo governo Temer 1.5 e tinha uma premissa relativamente simples (obviamente com um texto complicado feito a vida...): inseriram na Constituição uma limitação de gastos que o governo poderia efetuar tendo como base de cálculo os gastos dos exercícios anteriores, corrigidos pela inflação.

 

Ou seja, na proposta do Temer 1.5, era como se o Estado fosse um inconsequente adolescente que teve a imposição de um limite na mesada. Se gastasse muito dinheiro na balada e faltasse o do lanche, o estômago ia ter que ficar roncando.

 

A galera gostou, aplaudiu e achou bonito. Eram medidas de austeridade fiscal. Vários especialistas vieram para explicar como era importante ter um limite de gastos e impedir o aumento da dívida. Independentemente do valor ou desvalor da proposta (o que vai depender de qual lado da torcida de futebol você está), tinha uma pedra no meio do caminho.

 

Qual era: nós estamos no Brasil e aqui não é terra para amadores... é sempre importante lembrar isso.

 

E por que essa lembrança é importante? Porque na primeira situação em que o teto de gastos se mostrou um impeditivo para o governo gastar a gente sabe o que aconteceu. O teto foi furado! E aí a gente “descobriu” que até tinha um teto, mas era de bolha de sabão.

 

Dali em diante, esse teto se tornou um ótimo exemplo acadêmico, sem absolutamente qualquer repercussão prática. O governo queria gastar e não podia. E aí você pode imaginar um diálogo assim dentro do Palácio do Planalto:

 

- Meu Deus, não podemos gastar mais por causa do teto!

- O que fazer?

- Bora lá furar o teto de gastos.

- Problema resolvido!

 

Estávamos todos diante de um Frankstein jurídico sensacional, com todos os ingredientes para uma sopa tupiniquim com aquela marquinha de placa de botequim que a gente vê na internet: “Pode gastar? Não pode! Mas se quiser, aí pode!”

 

O exemplo mais contundente que tivemos em um passado recente foi a denominada, carinhosamente, de PEC Kamikaze, que nada mais era do que a PEC que, em pleno período eleitoral, permitiu ao governo estourar absolutamente todos os limites de gastos possíveis e imagináveis. E o teto? Ora o teto... sabe-se lá o que é isso.

 

É óbvio que o governo entrante, então na oposição, deu o maior berro e disse que estava errado. Afinal, o dinheiro do Estado fora gostosamente utilizado para financiar a campanha de reeleição do governo vigente.

 

Um parêntesis necessário: é preciso lembrar que nós estamos no Brasil e aqui a galera dá risada na cara do perigo. Então antes de você ficar chateadinho ou todo inflamado com o que eu disse, lembra que todos (todos!) os governos que se candidataram à reeleição usaram a máquina do Estado para isso. As crianças não vão lembrar, mas fatalmente os adultos da sala se lembrarão do Lula batendo a mão melada de petróleo nas costas da Dilma para empurrá-la rampa do Planalto acima. A questão do último governo foi só a dimensão da fatura, que corou até o mais malemolente dos malandros.

 

Voltando: apesar da grita com o uso do dinheiro público na campanha, também para a surpresa de zero pessoas, a oposição votou favoravelmente ao furo do teto de gastos. Isto porque os aderentes ao atual governo também criticam a existência de um teto de gastos públicos, ao argumento de que o Estado não pode ter limite para gastar, sob pena de impor restrições em áreas sensíveis para a população (como saúde e educação).

 

Entra o novo governo e manteve-se a crítica ao teto de gastos. Só que aí tem um probleminha técnico que pouca gente explica e faz toda a diferença para continuar esse texto... Então tenha paciência e me acompanha aqui.

 

Você consegue furar o seu teto de gastos (vulgarmente conhecido como salário)????

 

Se o teto de gastos é o tanto de dinheiro que o governo tem, como raios ele fura o teto? Não sei na sua casa, mas na minha casa se eu quiser furar o teto de gastos eu tenho certeza que o SPC deixa fazer uma vez só.

 

Eis o pulo do gato: com o governo é diferente. Neste quadrado é possível aumentar o próprio salário e furar o teto tomando poupudos empréstimos por meio de emissão de títulos de dívida pública. Seria como você sair assinando notas promissórias e pegando o dinheiro para fechar a conta do mês.

 

O problema é que os juros dessa dívida aumentam ou diminuem de acordo com o humor do fantasmagórico mercado (que nada é do que as pessoas e empresas que compraram esses títulos e dizem se confiam ou não que o Estado vai pagar ou dar calote).

 

É interessante que tem uma galera que fica muito impressionada e soltando umas frases de efeito na internet do tipo: “o mercado não se incomoda com gente passando fome, mas fica todo arrepiado com regras que afrouxam o controle de gastos do governo”. O engraçado é que essa pessoa acha que está lacrando, quando na verdade ela está dizendo a mais óbvia verdade.

 

E o raciocínio é simples! Imagina que você emprestou R$ 50.000,00 para o seu cunhado (entendeu que é para o cunhado?) e recebeu de volta uma nota promissória de R$ 55.000,00 (jurinho muito camarada por sinal...).

 

Aí eu vou te dar dois cenários.

 

Cenário 1: você olha o seu cunhado trabalhando direitinho todo dia, juntando grana, ficando em casa no fim de semana, trocou o carro 2.0 por um 1.0, tirou o clube das crianças e trocou a viagem de fim de ano por um fervoroso natal em família com refri e farofa, perto de casa e brigando por causa de política.

 

Cenário 2: você vê seu cunhando metendo o pé na jaca, rodando de carro zero esportivo do ano, passeando com a família na Disney, churrasco todo fim de semana e desfilando um guarda roupa novo a cada ida ao shopping.

 

Detalhe: nos dois cenários o seu cunhado não trocou de emprego e continua ganhando o mesmo salário. Aí eu te pergunto: em qual dos dois cenários você vai acreditar que o seu cunhado vai te pagar meu consagrado??? E eu te pergunto mais: o que a fome das criancinhas na rua interferiu no seu raciocínio para responder à pergunta anterior???

 

Em resumo, os agentes do mercado só querem “o deles”. Não esperem absolutamente nada mais do que isso. E ouso dizer que você aí que está lendo, se estivesse neste lugar, não deixaria a fome que assola o nosso país interferir no seu interesse em receber o dinheiro que emprestou. 

 

Ou seja, assustar o mercado significa virar para o seu credor e acender um charuto com uma nota de cem mostrando a carteira vazia. Essa dívida, obviamente, vai ficar mais cara para compensar as emoções.

 

Via de consequência, para fazer um contraponto a isso, o atual governo, que não pode deixar de falar contra o teto, mas não pode negar a realidade, vem com esse novo arcabouço fiscal que nada mais é do que uma tentativa de controlar os juros e a bolsa, acalmando o mercado com o recado de que ninguém vai comer picanha com o dinheiro deles.

 

Em suma, estamos diante de um gigantesco mais do mesmo! Um teto de gastos sem nome de teto de gastos. Não se engane, com nominhos bonitos, o corte vai ser onde "dá para cortar": investimentos, obras, saúde, educação, pi pi pi, pó pó pó...

 

E esse mais do mesmo não chega nem perto de encarar o ponto mais dramático de toda essa história e que ninguém até hoje chegou perto de ter coragem de tratar abertamente: o Estado brasileiro consome as riquezas do país e é um indutor da nossa pobreza.

 

E o Estado começa a sugar a riqueza exatamente da base da pirâmide, ao promover uma ampla tributação sobre o consumo de forma absolutamente desregrada. Em terras tupiniquins, a tributação total sobre consumo chega a 43%! 

 

Pescou? Faz a conta aí do que isso significa! Em termos práticos, é como se a sua capacidade de comprar (o “poder de compra”) fosse reduzido pela metade porque a outra metade é custo tributário. E só para lembrar que neste percentual aí não está incluída a tributação sobre a folha de pagamento (Imposto de Renda, FGTS e INSS) e sobre o patrimônio (IPTU/IPVA).

 

Para as pessoas de baixa renda é um mecanismo absurdamente injusto, já que quanto mais baixa a renda maior parte dela (para não dizer tudo) vai para o consumo (que é um nome bonito para expressar a batalha diária para colocar arroz e feijão no prato).

 

E em que esse novo arcabouço fiscal mexe em relação a este vespeiro que atormenta quem tem boletos de estimação? Nada!

 

Voltamos ao quadro inicial, em que o governo atua para garantir que a sua própria dívida permaneça com juros baixos para que possa novamente emitir novas dívidas, para fechar a conta e assumir mais dívidas, para pegar novas dívidas e começar e recomeçar tudo infinitas vezes. E daí que, trocando em miúdos, vamos mudar tudo para manter tudo absolutamente como sempre esteve.

 

E como disse o belo horizontino Djonga: “esquerda de cá, direita de lá! E o povo segue firme tomando no centro... onde a tristeza do abuso é da maioria e o prazer de gozar sobra p’ra 1%”.

 

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