Todo mundo viu a notícia da decisão do Supremo Tribunal Federal na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 334 que declarou ser incompatível com a Constituição da República de 1988 a previsão do Código de Processo Penal que estabelecia a prisão especial para “os diplomados por qualquer das faculdades superiores da República”.
O Relator, Min. Alexandre de Moraes, destacou que a "extensão da prisão especial a essas pessoas caracteriza verdadeiro privilégio que, em última análise, materializa a desigualdade social e o viés seletivo do direito penal e malfere preceito fundamental da Constituição que assegura a igualdade entre todos na lei e perante a lei."
Rapidamente a OAB emitiu nota informando que a prisão especial estabelecida para os Advogados não foi atingida pela decisão do STF, o que significa que o nosso quartinho (chamado de sala de Estado Maior), com instalações e comodidades condignas, ou a prisão domiciliar, estão garantidos.
Pois bem, a minha intenção aqui é te convencer que faz muito sentido manter esta ressalva para os Advogados e eu quero fazer isso sem tecnicalidades jurídicas. Para isso tem uma enxurrada de engravatados cumprindo o seu papel.
A minha intenção aqui é ir pelo lado contrário e mostrar, em uma perspectiva social e histórica, porque a gente precisa proteger a Advocacia e não o Advogado. Então aqui vão diversos parêntesis antes de a gente continuar....
- Parêntesis 1: Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental é daqueles nomes que faz o professor de Direito Constitucional ter regozijos linguísticos e o aluno uma síncope. Adoro!
- Parêntesis 2: É preciso deixar claro para as pessoas normais que para as pessoas com formação jurídica (que estão, obviamente, apartadas da primeira classe), norma inconstitucional é diferente de norma não recepcionada pela Constituição. E acredite, tem lógica! Mas eis aí um bom exemplo do porquê a gente não consegue se comunicar fora da bolha.
- Parêntesis 3: Eu realmente acho curiosíssimo o conceito de “prisão especial”, como se tivesse alguma coisa de especial em uma prisão. Ademais, a necessidade de destacar que a prisão especial deve ser “condigna” é a confissão institucionalizada de que a prisão geral não é. Dorme com essa...
- Parêntesis 4: A primeira vez que eu ouvi a expressão “sala de Estado Maior” fiquei tentando descobrir se tem uma “sala de Estado Menor”... Neurotípicos não entenderão...
Chega!
Voltemos: Quando a OAB soltou a nota, veio uma galera criticar e falar que era um absurdo! Falar que esse povinho do Direito já tinha dado um “jeitinho” de se proteger das picaretagens que pratica e mais um monte de groselha bem típica de quem estuda pelo grupo do zap.
Por causa disso, é importante situar as crianças sobre o ambiente em que vivemos e, para isso, precisam entender coisas que não viveram. Isso dá um trabalho do cão e se chama estudar História. É uma das coisas mais legais de se fazer na escola e, infelizmente, muitas vezes é relegada a um segundo plano.
- Parêntesis 5 (foi mal, não resisti): Obviamente que fica muito mais difícil de mudar esse cenário desinteressante da História em um ambiente em que os professores de História (e não só eles) são reduzidos a comunistinhas incumbidos da catastrófica tarefa de destruir as nossas famílias. Como diz a minha queridíssima comadre Luciana, que é dessas desparafusadas que enfrenta um exército de crianças diariamente (acreditem, elas são perigosas!), esse povo atribui um poder meio surreal para os professores enquanto eles estão tentando (sem sucesso) só fazer com que a molecada cale a boca...
Voltando: Eu estou fazendo essa volta aparentemente sem sentido para te mostrar um negócio importante aqui e que talvez você ainda não tenha lido:
“Art. 10 - No interesse da paz e da honra nacional, e sem as limitações previstas na Constituição, os Comandantes-em-Chefe, que editam o presente Ato, poderão suspender os direitos políticos pelo prazo de dez (10) anos e cassar mandatos legislativos federais, estaduais e municipais, excluída a apreciação judicial desses atos.”
Sabe quem assinou esse negócio aí? Um tio do zap chamado General do Exército Arthur da Costa e Silva, no dia 09 de abril de 1964. Esse aí é o art. 10 do Ato Institucional n. 1 que “consolidou” o golpe de 1964.
- Parêntesis 6 (eu juro que estou tentando, mas está difícil de segurar): pode me confessar que você só estudou o AI-5 como se não existisse um AI-1, AI-2, AI-3 e AI-4 antes!
Voltamos: E podem vir os chiliquentos para discutir o que quiserem: foi golpe! Tem um mandatário eleito que é tirado do poder para assumir uma pessoa que não foi eleito é golpe, meu povo! E se esse não eleito é das forças armadas, então é golpe militar.
Aí já vem o outro: mas e Cuba? Ora, é golpe! E a Venezuela? É golpe! E tantos quantos você quiser! Desrespeitou regras básicas de uma democracia (como alternância de poder e respeito ao resultado das urnas) é golpe e é ditadura. Qual a dificuldade de ser coerente, meu senhor!
Mas bem, então repara que é meio linear esse negócio. E eu posso provar! Dá uma olhada em outro trecho do AI-1:
“O presente Ato institucional só poderia ser editado pela revolução vitoriosa, representada pelos Comandos em Chefe das três Armas que respondem, no momento, pela realização dos objetivos revolucionários, cuja frustração estão decididas a impedir. (...) Fica, assim, bem claro que a revolução não procura legitimar-se através do Congresso. Este é que recebe deste Ato Institucional, resultante do exercício do Poder Constituinte, inerente a todas as revoluções, a sua legitimação.”
Presta atenção neste trecho icônico! Pode me agradecer se você não lembra de ter lido isso na aula de História. E o que tem isso com prisão especial? Tem tudo. Volta lá e repara nesse trecho: “excluída a apreciação judicial desses atos.”
Em resumo: o que essa galera fazia não podia ser questionado na Justiça! Não é de hoje que esse povo tem uma certa resistência em dar explicações...
Pois é! E aí vem uma perguntinha inevitável: quem é mesmo que “leva” os questionamentos contra autoridades para a Justiça? Ah sim... É o maldito do Advogado. Não fosse essa praga, o juiz não ficava sabendo da ilicitude e do abuso da autoridade. E se esse miserável não abrisse a boca para falar essas baboseiras, não obrigava o juiz a decidir.
Sacou? O sistema jurídico é um verdadeiro entrave para quem exerce o poder. E para quem quer abusar do poder, o sistema jurídico é um inimigo. Um Advogado com as suas prerrogativas garantidas não tem medo de levar ilegalidades ao Judiciário.
Se juntar a isso um Ministério Público independente (e com prerrogativas garantidas) e um Poder Judiciário independente e também com as prerrogativas garantidas, o resultado é miserável! Afinal, as ilegalidades das autoridades são debatidas, discutidas, tratadas e decididas publicamente! Pior! Diante destas ilegalidades, essa trupe independente pode levar à condenação da autoridade ou à invalidação da decisão da autoridade.
Você há de concordar comigo que para aqueles que não são muito afeitos a limites esse é um cenário realmente ameaçador.
E você acha que para por aí! Claro que não. Eu não ia deixar de te deleitar com o famoso AI-5, aquela norma jurídica que é quase igual à Bíblia: quase todo mundo já ouviu falar, mas quase ninguém leu! Pois é, então vai aí uma pitadinha:
"Art. 5º - A suspensão dos direitos políticos, com base neste Ato, importa, simultaneamente, em:
I - cessação de privilégio de foro por prerrogativa de função;
II - suspensão do direito de votar e de ser votado nas eleições sindicais;
III - proibição de atividades ou manifestação sobre assunto de natureza política;
IV - aplicação, quando necessária, das seguintes medidas de segurança:
a) liberdade vigiada;
b) proibição de freqüentar determinados lugares;
c) domicílio determinado,
§ 1º - O ato que decretar a suspensão dos direitos políticos poderá fixar restrições ou proibições relativamente ao exercício de quaisquer outros direitos públicos ou privados."
Não é legal isso aí? O Estado Militar podia retirar a prerrogativa de foro de um agente político que resolvesse falar demais! Tem gente que é matraqueiro, né? Aí nesses casos é melhor julgar com um juiz que o Estado Militar escolhesse. Pareceu justo e adequado?
- Parêntesis 7 (eu juro que é o último): alguém me lembra, pelo amor de Deus, de escrever um texto explicando que a única hipótese legal em que aparece o termo “foro privilegiado” é no AI-5 e que a sua extinção é uma aberração democrática!
Voltando: Ah... eles podiam também te proibir de frequentar um sindicato e ser votado lá. Afinal, sindicato é lugar de gente indecente mesmo. Tudo criminoso. Melhor o Estado Militar decidir quem entra e quem sai.
Obviamente, para a garantia da paz social, é importante que o Estado Militar possa decidir também quem pode abrir a boca para falar de política e quem não pode. Afinal, o bom senso desse povo para este tipo de recorte é conhecido e ninguém melhor para nos conduzir neste plácido caminho à ordem e à segurança. Eu mesmo, se me vigiasse, me proibia de falar, mas não tem mais lei nesse país...
Por fim, podia também te deixar livre! É um Estado bom né? Como criticar... claro que com ressalvas porque, conforme o preâmbulo do AI-5, atos subversivos estavam conspirando contra os objetivos maiores da revolução vitoriosa. Então você é livre como passarinho, desde que fosse vigiado por um agente do Estado, sem poder frequentar os lugares que o Estado determinava e com domicílio obrigatório fixado pelo Estado.
Tudo em nome da segurança nacional, obviamente.
E aí eu te pergunto: e quem discordasse da decisão? E se você se julgasse um cidadão de bem, defensor do regime e do Estado Militar e, por isso, não tivesse feito nada para ser punido mas foi? E se você tivesse sido confundido com um comunistinha subversivo por causa de maldito homônimo desses pais desvairados que insistem em batizar a criançada como Vladmir?
Pois é, foi mal, mas mesmo assim não ia dar para fazer muita coisa. Sabe por quê? Porque tinha um parágrafo segundo no meio do caminho. Dá uma olhada:
“§ 2º - As medidas de segurança de que trata o item IV deste artigo serão aplicadas pelo Ministro de Estado da Justiça, defesa a apreciação de seu ato pelo Poder Judiciário.”
Sabe o que significa a palavra “defesa” aí do texto, meu consagrado? Significa “proibida” de uma forma polida e bonitinha. Em outras palavras: não adianta nem tentar porque o Judiciário não pode julgar o seu pedido.
Acabou? Claro que não! Sempre tem mais porque sempre tem um comunistinha para ameaçar a nossa existência. Então se você, cidadão de bem, cumpridor dos seus deveres cívicos e defensor ardoroso do Estado Militar fosse preso injustamente porque estava no lugar errado e na hora errada, sabe o que ia acontecer? Nada. Você ia ficar lá.
E a história do telefonema e de chamar quem mesmo??? Ah... a história hollywoodiana e estúpida de chamar um Advogado para te defender... Então, não podia. Olha aí:
“Art. 10 - Fica suspensa a garantia de habeas corpus, nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular.”
Mas e se você encontrasse um Advogado corajoso (ou maluco ou, mais provavelmente, também comunistinha) que resolvesse ignorar essa bela estrutura legal, talvez com essas ideias bizarras de que leis injustas precisam ser combatidas? E se esse maluco resolvesse procurar um juiz (também maluco) para contestar a legitimidade dessa coisa toda?
Não se engane, quando a gente vai com a farinha esse povo já está voltando com a farofa. Vamos tirar as prerrogativas do juiz também!!! É tão simples manter a ordem e progresso né! Olha aí:
“Art. 6º - Ficam suspensas as garantias constitucionais ou legais de: vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade, bem como a de exercício em funções por prazo certo.”
E aí, para arrematar, a gente tira esses enxeridos de tudo, porque fica mais simples:
“Art. 11 - Excluem-se de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com este Ato institucional e seus Atos Complementares, bem como os respectivos efeitos.”
Ficou bom para você? A galera de lá gostou e aplicou bastante. Até porque é um raciocínio simples: a gente faz o que quer e ninguém pode questionar. Se o retardado do subversivo encontrar um maluco de um Advogado para questionar, a gente prende o Advogado.
E se por um acaso o maluco (e agora criminoso) Advogado encontrar um maluco de um juiz que aceite o escutar, a gente despacha o juiz e coloca outro no lugar que atenda aos mais elevados interesses nacionais! Pronto! A ameaça comunista está gloriosamente combatida.
E eu espero profundamente que você tenha entendido que prerrogativa não é privilégio. Prerrogativa é garantia para que abusos não sejam cometidos. Me lembro que há poucos meses eu fiz uma petição ao Poder Judiciário e assinei com o meu nome (todinho lá, com todos os dados e tudo mais) afirmando que um Tenente-Coronel do Exército Brasileiro havia praticado um ato ilegal e, por isso, nulo de pleno direito.
Impossível não pensar em quanta gente não foi presa e calada para que eu, um simples Advogado, sem sobrenome e nem costas quentes, possa afirmar publicamente que uma autoridade desta patente viola a lei sem ter medo de voltar para casa. Prerrogativa é isso.
E se a autoridade abusar do seu poder (como a gente já viu aí o povo prendendo Advogado por desacato, sendo que desacato está fora do rol de crimes passíveis de prisão cautelar), a prisão especial é a prerrogativa para evitar que o mero ato prisional seja instrumento de pressão, penalidade e ameaça. É algo do tipo: quer prender? Toca adiante. Vai ser abuso de autoridade e ainda vai ter que me dar suquinho.
Não é à toa que a prisão especial prevalece para o Advogado, para o Ministério Público e para o Poder Judiciário, assim como outras prerrogativas. Não é luxo, é necessidade. E as crianças não viram, mas podem ter fácil acesso aos dados que mostram como é preciso dar cobertura para quem vive a vida mexendo em vespeiros.
Recentemente o Estado de Israel parou (literalmente) para defender a independência e as garantias do seu Poder Judiciário. Um projeto de lei autocrata absurdo pretende retirar a independência do Judiciário e blindar adivinha quem? Pode rir... porque o padrão não muda mesmo.
E o povo foi com metade (isso mesmo!!!) da população da capital na rua para barrar o projeto e garantir a independência do Judiciário e o valor das suas decisões. Só quem sentiu na pele o que é o perigo da ausência de limites de poder para entender que isso não é conversa de zap.