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A guerra dos discursos e os discursos da guerra

A rendição alemã é um ótimo exemplo para refletirmos sobre os dias de hoje e o maniqueísmo que povoa o nosso imaginário coletivo


10/05/2023 06:00 - atualizado 10/05/2023 10:48

Imagem em preto e branco do primeiro ministro britânico Winston Churchill em pé com uma das mãos em uma cadeira
Winston Churchill, uma das figuras centrais na II Guerra Mundial. (foto: ndla.zendesk.com)
A Segunda Guerra Mundial tem um fato curiosíssimo que faz aniversário no dia 08/05 e 09/05 ao mesmo tempo e que nos ajuda bastante a refletir sobre os nossos atuais conceitos de “bom”, “mau”, “correto”, “errado”, “justo”, “injusto”, etc.

 

Isto porque a rendição da Alemanha nazista se deu no dia 08 de maio de 1945 e foi divulgada por Winston Churchill, então primeiro-ministro britânico. Houve um comunicado oficial, com documentação e designações de providências para o encerramento da guerra e otras cositas más. Ou seja, toda a pompa e a circunstância que o momento exigia e a sua marcação histórica como o fim de um dos tempos mais tenebrosos da nossa História nesta terra (e olha que a concorrência neste quesito é surreal).

 

Ocorre que tinha um probleminha aí nesta rendição. O lado dos malvadões da guerra era composto pelo Eixo, formado por Alemanha, Itália e Japão. 

 

Parêntesis 1: isso mesmo crianças... o fofinho Japão era do lado nazista. O fofinho e tecnológico Japão se fortaleceu como potência dizimando povos Coreanos e Chineses (quando a China nem sonhava em ser potência). O exército Japonês é marcado historicamente por destruir absolutamente tudo que vê pela frente, incluindo especialmente espaços civis, com aniquilação de idosos e crianças e estupro de mulheres. Se você é daqueles que acha o povo japonês super evoluído, cheio das tradições superlegais  e samurais com valores guerreiros supremos, fique sabendo que o passado recente dessa galera é meio questionável.

 

Voltando: Do outro lado, o lado dos mocinhos bonzinhos, composto pelos Aliados, estavam o Reino Unido (o do Winston Churchill), a França, os Estados Unidos e a União Soviética.

 

Parêntesis 2: isso mesmo crianças! EUA e URSS estiveram juntinhos um ao lado do outro lutando contra a maldade do mundo e pelo bem da democracia. A URSS, liderada pela federação Russa, que tem formato semelhante até hoje, esteve ao lado das maiores potências mundiais contra os nazistas. Hoje essas mesmas potências são as que a Rússia acusa de serem nazistas.

 

Voltando: E o que isso tem a ver com o tema proposto? Pois bem, se você está atento ao texto e não se perde nos meus parêntesis e devaneios, vai lembrar que eu disse que tinha um probleminha nessa rendição alemã. E o probleminha é que a maior responsável pela rendição da Alemanha nazista foi a União Soviética!

 

A URSS tinha o soldado mais poderoso do mundo ao seu lado: o gelo. Mas é um gelo tão gelado que nem alemão dá conta! Consegue imaginar? Pois é... por essas e outras, a URSS colocou a Alemanha de joelhos (óbvio que o processo não é simples assim, mas de fato o poderio de terra da URSS foi fundamental para o sucesso da empreitada).

 

E aí, depois de fazer todo o trabalho “sujo”, a Alemanha vai lá e se rende para o Reino Unido!!!

 

Obviamente que a URSS deu o grito na hora e ficou furiosíssima com este ato e principalmente com o fato de que o Reino Unido aceitou de muito bom grado receber os louros da rendição sem ter tanto trabalho assim. Não por outro motivo, a URSS foi lá e exigiu que a Alemanha ratificasse o instrumento de rendição feito no dia 08/05/1945 em um quartel soviético, o que ocorreu no dia 09/05/1945.

 

Imagina a cena: a Alemanha se rende perante o Reino Unido. Sir Winston Churchill vai lá e faz um pronunciamento pomposo sobre a vitória da democracia e dos países bonzinhos sobre os países malvados e etc. Daí vem a URSS e levanta a mão e grita: não valeu!!! Pode fazer tudo de novo aqui porque esse lance estava impedido porque eu não estava participando. Repete aqui. Aí vai a Alemanha fazer tudo de novo, agora para o agrado e deleite da URSS. 

 

Parêntesis 3: ganhar a guerra tem, dentre outras vantagens, a concessão da prerrogativa de se fazer o que bem entender com o perdedor. O Japão, por exemplo, teve uma Constituição imposta pelos EUA (olha a loucura!) e que vale até hoje. Inclusive, só recentemente que o Japão pode ter um exército de novo, porque essa Constituição (que não foi feita pelo povo japonês) proibia. A Alemanha, todo mundo sabe, foi dividida ao meio para ninguém ficar triste de ficar sem brinquedo. Além disso, e talvez seja a parte que você não soubesse, teve que se render duas vezes para agradar a gregos e troianos.

 

Voltando: em razão disso, há dois dias diferentes para a rendição alemã. O dia 08/05 e o dia 09/05. Obviamente, a Rússia comemora o dia da rendição no dia 09 (você deve ter visto nos jornais) e se assume como a maior responsável pelo fim da guerra. E sabe de uma coisa? Ela não está de todo errada! Foi isso mesmo.

 

Por sua vez, você, pessoa ocidentalizada e aprendiz de guerra a partir de Hollywood, aprendeu que o fim da guerra se deu no tal do “dia d”. Só que o “dia d” aconteceu quase um ano antes (em junho de 1944) e foi o início de um processo que encurralou a Alemanha, a expulsando de território francês. A liderança deste movimento e a retomada da França foi encabeçada por um senhor chamado Charles de Gaulle.

 

Parêntesis 4: Sim, Charles de Gaulle não é só um aeroporto, mas a homenagem ao “salvador da França” e que depois foi responsável por governar o país e criar mecanismos de governança meio questionáveis para uma França que ele mesmo dizia ser “Ingovernável”. Você viu essa quebradeira que aconteceu na França recentemente? Pois é, foi por causa do uso de um trecho da Constituição Francesa concebido por este senhor para viabilizar decisões “difíceis” sem precisar perguntar para a galera se estava do agrado. Olha como uma coisa puxa a outra...

 

Voltando: a questão é que se a França, EUA e Reino Unido pressionaram “por baixo”, a URSS apertou “por cima” e sufocou os esforços de guerra alemães. Ou seja, todo mundo tem o seu pedaço desse bolo, mas ninguém fez nada sozinho.

 

Aí vem um questionamento necessário: quem é o herói e quem é o vilão? Se você conseguir o mínimo distanciamento vai perceber que não tem uma resposta para essa pergunta.

 

A URSS ajudou a combater o nazismo? Sim! Então ela faz parte do rol dos heróis? Depende! Ela fez isso para expandir o seu território e os domínios soviéticos, na sua pretensão de aplicação da governança comunista pelo mundo.

 

Ou seja, suas pretensões não eram tão puritanas assim, mas de expansão do seu território de poder (como fez com tantos países do seu entorno). Tanto que fez questão de ficar um naco da Alemanha.

 

Por sua vez, os EUA eram os heróis? Se você olhar pelo lado de que foram os grandes financiadores e fornecedores de estrutura e suprimento para garantir a vitória na guerra, pode-se dizer que sim. Mas eles estavam lutando pelo bem do mundo? Obviamente não.

 

Na verdade, estavam capengando desde a crise de 1929 e penando com um programa de aceleração do crescimento que perambulava (sim! Tiveram um PAC também, mas chama New Deal) e os esforços de guerra geraram poupudas receitas que alavancaram o país ao patamar de potência mundial novamente. Além disso, ainda tiveram o famoso acordo de Bretton Woods de bandeja, que nada mais foi do que o estabelecimento do dólar como moeda mundial. Não precisa explicar que isso é ótimo para os negócios. 

 

Então os EUA estavam lutando contra a maldade do mundo? Obviamente que não. Se tivessem que fazer isso contra a França e o Reino Unido ao invés de Japão e Alemanha, teriam feito igualzinho.

 

E no final, todo mundo quis pagar de salvador do mundo e faz isso até hoje. Outra coisa importante para colocar na mesa: as peças desse tabuleiro mudaram muito! O Japão hoje é aliado dos EUA. A Rússia, desde a guerra fria, se afastou dos EUA e hoje se aproxima cada vez mais da China. 

 

Isso aconteceu porque o Japão ficou bonzinho do dia para a noite??? Claro que não. Mudam os interesses, mudam os vilões.

 

E o que nós podemos aprender com isso? Dentre tantas coisas, podemos aprender que não existem heróis e não existem vilões do palco do poder. Quem só quer o bem do mundo abre uma ONG na beira da praia e vai salvar tartarugas marinhas, fazer campanha de “salve o mangue” e recolher lixo da areia. Isso se essa ONG não for palco para buscar voto para vereador (o que é muito comum por sinal).

 

Ou seja, precisamos olhar esses eventos para entender e amadurecer a nossa perspectiva ao ponto de ter clareza de que não há pessoas nos palcos de poder que estão lá em franca doação para prover o mundo do bem e da bondade típica da pureza das crianças. Há interesses pessoais, de poder, econômicos, políticos e conjunturais. Neste ambiente, até fazer o bem é algo interessado (o que deve te levar a se fazer a pergunta: fazer o bem para quem?).

 

Para aqueles que ainda enxergam a política e a produção das decisões estatais com a profundidade do playground de um jardim de infância e, por isso, ainda estão pensando a política como uma torcida de futebol, fica difícil entender. E isso se dá porque somos ensinados a pensar sob uma perspectiva maniqueísta.

 

Maniqueísmo é uma corrente de pensamento medieval (sim, você não leu errado, é do medievo) que propõe a premissa de que existem dois lados: bom e mau. Se você é uma coisa, logo você não é outra.

 

Infelizmente, esse pensamento ainda é profundamente arraigado na mente das pessoas, até porque a nossa construção cultural alimenta essa noção. É a vida formatada pela Marvel e pela Disney, onde há mocinhos, heróis e princesas puros de coração e alma, lutando bravamente contra vilões de toda sorte que são puramente maus e ruins de coração e buscam incessantemente causar o maior número de danos possíveis.

 

Não por outra razão eu não suporto heróis! Nunca suportei essa construção absolutamente descolada da realidade sobre alguém moralmente superior, bom em essência e mais apto a dispersar o bem no mundo contra pessoas inferiores que buscam fazer o oposto. Heróis são, em essência, autoritários, pois se acham bons o suficiente para impor a sua forma de ser e ver o mundo e a justiça para os outros.

 

E pior do que isso, essa noção é transferida para o mundo do direito e da política! Ou de onde você acha que surgem os heróis populistas que saem por aí ancorados no estúpido discurso de salvar o país da escória da sociedade? O populismo nasce do heroísmo e desta ideia de que existe uma pessoa boa em essência e, por isso, mais apta a prover as pessoas do bem e combater o mal.

 

O problema é que basta uma olhada muito simplória para a História e para o mundo para entender que isso está ridiculamente errado e essa imaturidade somente beneficia aos mal-intencionados. Essa ideia permite construção descoladas da realidade com a seguinte premissa: se alguém é bom em essência, qualquer coisa que ele fizer é justificada, ainda que seja um absurdo. Por sua vez, se alguém é mau em essência, qualquer coisa que ele fizer será condenável, ainda que seja razoável.

 

Afinal, no fantástico mundo da fantasia maniqueísta que permeia o pensamento do mundo até hoje, uma pessoa boa em essência não pode fazer coisas ruins e uma pessoa má em essência não pode fazer coisas boas. E daí a gente segue tocando a vida do país como em um estádio de futebol, vibrando feitos tolos torcedores apaixonados, incapazes de reconhecer as mazelas do próprio time, reduzindo a zero qualquer qualidade do outro time e acreditando piamente que o time que faz pulsar seu coração só não será campeão se o juiz roubar para o outro.

 

Talvez se a gente parasse de assistir a super-heróis  e suas fantasias irreais, moralistas e descoladas de qualquer senso de humanidade e conhecêssemos mais da história de Macunaíma, teríamos mais subsídio para desconfiar de quem se apresenta como bom, salvador, moralmente idôneo e, principalmente, herói. O problema é que o super-herói por sua postura linear, simplista e de zero complexidade, é muito fácil de assimilar. 

 

Por sua vez, Macunaíma é dificílimo, cansa, dá trabalho, é contraintuitivo e te expõe a realidades humanas demais para nos deixar confortáveis. Enxergar o ser humano como ele é mesmo, com suas vicissitudes, ambivalências e paradoxos exige muito e, principalmente, exige aceitar que não há heróis, não há salvadores e não há samaritanos contemporâneos, mas gente de verdade e que, na maioria das vezes, pode até fazer o bem, mas desde que alguém esteja filmando para colocar nas redes sociais.

 

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