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Estado de Minas DIREITO SIMPLES ASSIM

O Brasil, a Venezuela e a infantilidade tupiniquim

A presença do presidente da Venezuela no Brasil causou muito burburinho e muita prova de que o brasileiro precisa urgentemente entender como o Estado funciona


31/05/2023 06:00 - atualizado 31/05/2023 08:40
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Globo formado pela imagem das bandeiras de todos os países do mundo.
O mundo, como deveria ser óbvio, é mais complexo do que parece. (foto: Pixabay)

 

O presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, foi o centro das atenções na sua passagem pelo Brasil em um encontro bilateral com o presidente Lula e, depois, no encontro de líderes sul-americanos. O motivo de todo o alvoroço foi a recepção, pelo presidente do Brasil, de um chefe de Estado considerado ditador.

 

Parêntesis 1: hoje eu comecei cedo e serão muitos. Tenha paciência comigo. Já parou para pensar no conceito de ditadura ou só repete sem refletir? Pois é... se ditadura for o contrário de democracia, você precisa definir o que é democracia. Definindo democracia, você pega o modelinho e vai avaliando se cabe falar que é ditadura ou não. Por exemplo, há quem diga que não existe democracia sem eleição direta. Nesse conceito, os EUA não são uma democracia, pois lá a eleição é indireta. Pensa...

 

Voltando: E aí vem a parte dos fatos mais legal de todas para quem não vive no campo de futebol torcendo para o time A ou para o time B, mas comete o sacrilégio de tentar ver as coisas com racionalidade. E por que é divertido? Porque, de um lado, tem uma galera da esquerda fazendo um esforço curiosíssimo para santificar o Nicolás Maduro, como se ele fosse um cara muito gente fina. Quase um injustiçado... 

 

Por outro lado, dá dor na barriga de rir de ver a galera da direita espantadíssima com o Presidente da República recebendo ditadores, como se o ex-presidente não fosse assíduo acompanhante de mandatários de legitimidade duvidosa. Só para citar alguns, o ex-presidente foi recebido com pompa e circunstância pelo Viktor Orban, da Hungria; a deputada Beatrix von Storch, da Alemanha; Aleksandar Vicic, da Sérvia (conhecido como “putinzinho”, rs); Andrzej Duda, da Polônia; Alejandro Giammattei, da Guatemala; e, obviamente, Vladmir Putin, da Rússia.

 

Só tem gente do bem nessa lista... dá uma pesquisada para ver.

E a partir daí a gente pode tirar duas conclusões:

 

A primeira delas é que está todo mundo errado. A segunda é que, infelizmente, em terras tupiniquins se entende muito pouco ou quase nada de direito e relações internacionais.

Vou tentar explicar as duas afirmações.

 

Parêntesis 2: pode confessar que você estava esperando que eu defendesse um lado da torcida para falar que o outra estava errado... se deu mal. E se isso aconteceu, já estou cumprindo a minha missão de fazer alguém pensar que a vida pode ser um pouco menos binária do que a lógica de que “uma errada anula uma certa”.

 

Voltando: o primeiro erro é tentar justificar a presença e a recepção do Nicolás Maduro no Brasil com o fundamento de que ele é um “cara legal”. Essa aqui é para aquela pessoa esquerdista até a alma (só serve para ela ok!): Nicolás Maduro é cria do Hugo Chávez, que ficou no poder na Venezuela de fev/1999 até mar/2013 e só saiu porque ele estava doente e morreu. Ou seja, foram 14 anos de governo. Depois dele, por escolha do próprio Chávez, entra Maduro, que está, aos trancos e barrancos (mais trancos do que barrancos...), governando desde 2013. Ou seja, já são 10 anos.

 

Não precisa nem entrar na discussão sobre violação de direitos humanos para concluir que é ditadura! Do Hugo Chávez foi ditadura. Do Maduro também é. O resto das informações são meramente adicionais para comprovar o óbvio: há qualquer coisa na Venezuela menos democracia.

 

Junto desse erro (mas do outro lado) está o pseudo conservador direitista tupiniquim, que está assombradíssimo com a presença do Maduro em Terrae Brasilis e “esquece”, convenientemente, que o seu mito saudou muitas outras ditaduras nos 4 anos em que o manche estava com ele. Convenhamos, a visita à Rússia, com a homenagem aos soldados comunistas da URSS, foi emblemática de como essa galera passa pano a depender de quem é o malandro da vez.

 

Não fosse só isso, já procurou saber qual o discurso da Beatrix von Storch? Ela é nascida na nobreza (título de duquesa), neta de ninguém menos que Lutz Graf Schwerin von Krosigk, Ministro das Finanças de um senhor chamado Adolf Hitler. Aí já vem alguém dizer: o que tem o avô com a neta? E eu digo: a influência.

 

A pessoa é filiada ao partido AfD (Alternative für Deutschland, que significa “alternativa para a Alemanha”), grupo de extrema-direita que vem engrossando suas fileiras com grupos neonazistas e uma galera tipo o PEGIDA. Sim, PEGIDA é uma sigla e o “P” é de “Patriotische”, que significa “patriotas” e o resto dispensa maiores explicações. 

 

Acho que já deu né... Se até aqui você ainda não está convencido de que tanto a torcida organizada A quanto a torcida organizada B estão falando abobrinha, então sinto informar mas você é membro da torcida organizada e qualquer coisa que eu disser que não estiver dentro da cartilha não fará a menor diferença.

 

Agora, se você não é um torcedor fanático, vai perceber que esse negócio de tratar com ditadores e mandatários de reputação e legitimidade questionáveis não é exclusividade de ninguém, mas uma praxe. E aí eu passo para a fase dois, que é tentar te mostrar porque cargas d’água toda essa discussão é de uma esterilidade que beira à infantilidade.

 

Parênteses 3: a expressão “cargas d’água” vem do costume dos tripulantes das grandes navegações portuguesas e se referiam às tempestades a que eram surpreendidos no mar. Como você bem aprendeu nas empolgantes aulas de geografia da 6ª série, no mar chove o tempo todo e sem muito aviso (por motivos óbvios), de modo que a ideia é tratar de algo absolutamente sem lógica, como as discussões político-jurídicas que travamos no Brasil.

 

Voltando: Eu já falei em outro texto que, no âmbito internacional, vigora a anarquia, que não é a bagunça do seu quarto como dizia a sua mãe, mas a ausência de um governo central e superior. Ou seja, vale a lei do mais forte e cada um faz o seu corre para sobreviver.

 

Neste ambiente caótico e bastante desigual, sobreviver é mais importante do que qualquer outra coisa. E se você nasceu nas quebradas de Belo Horizonte como eu, sabe que sobreviver em um ambiente hostil é uma tarefa diária e não dá direito a férias ou relaxamento. Agora imagina no plano global, onde não tem absolutamente ninguém para chamar se a coisa ficar muito feia?

 

Pois é. Partindo desse princípio, que é meio básico demais (mas absurdamente negligenciado), as relações internacionais são pautadas, basicamente, por um grau criticamente sofisticado de hipocrisia, tudo com vistas à manutenção de interesses próprios. Todo mundo no palco global, a pretexto de criar confluências entre nações, acordos bilaterais, quebras de barreiras alfandegárias, e etc, está na verdade tentando salvar o seu.

 

Até porque, como sabiamente dizia a minha avó: “farinha pouca, o meu pirão primeiro”. 

 

Se você entender esse negócio, vai conseguir perceber com muito mais clareza uma série de movimentos que são comuns nesse cenário (e eu nem vou passar perto da Venezuela! Por enquanto...). Quer ver um?

 

Com a guerra na Ucrânia, foram impostas inúmeras sanções contra a Rússia. Só que a Rússia é a maior fornecedora de gás da Europa e, obviamente, esse embargo ao gás russo ia dar problema, com falta de abastecimento. O que Alemanha fez? Foi comprar dos Emirados Árabes Unidos e do Catar, firmando acordos de fornecimento dantescos para a garantia de suprimento de gás da sua população.

 

Parêntesis 4: talvez não tenha ficado clara a dimensão desse exemplo, mas a Alemanha é o país europeu mais islamofóbico que existe e isso não foi um problema para sentarem placidamente à mesa para negociar gás como bons amigos e parceiros... até porque faltar gás em um lugar que faz -20ºC no inverno é sentença de morte. E entre a morte e passar um paninho para a ditadura catari, os indianos e nepaleses que são escravizados e mortos por lá que se lasquem.

 

Voltando: Tem mais... com a guerra na Ucrânia, o petróleo russo também foi embargado. E na falta de combustível, cada um foi dar o seu jeito. E sabe uma das coisas que aconteceu? A Índia começou a comprar esse petróleo russo bruto, refinar no seu território e vender sabe para quem??? Sim... para a Europa, a mesma que não pode comprar petróleo russo porque está embargado.

 

Assim, os Estados europeus estão ajudando a Ucrânia contra a agressão russa à democracia e à soberania e não estão financiando o Estado russo e seus esforços de guerra. Afinal, estão comprando petróleo da Índia agora e não mais da Rússia. Agora, se a Índia está comprando esse mesmo petróleo que ela vende para a Europa da Rússia aí já é um problema mais complexo e que não dá para controlar...

 

Quer saber outra coisa que aconteceu? Um dos mais ácidos críticos do Nicolás Maduro era...

 

Parêntesis 5: pode falar que você achou que era o Bolsonaro né?? Pois é, errou de novo.

 

Voltando: o Emmanuel Macron! O mandatário que era criticado pelo Bolsonaro! Sim, o líder da democrática França, esse país símbolo de respeito ao próximo e aos direitos humanos e que ao longo da história saqueou, colonizou, matou, escravizou e submeteu povos em quase metade do continente africano, em parte da Ásia e das américas. Mas tudo em nome da democracia, claro. Pois é, o líder desse povo que é exemplo histórico para todos nós era crítico veemente do Nicolás Maduro, o chamou de ditador em público inúmeras vezes, deslegitimou seu governo e apoiou severas sanções ao país.

 

Aí veio a guerra na Ucrânia e o que a Venezuela tem sobrando??? Sim... petróleo! Pois é, não é que de uma hora para a outra o Macron mudou de ideia e achou razoável dialogar igualzinho a um adulto comportado com o Maduro? Obviamente que não era por interesse no petróleo da Venezuela, mas para restabelecer laços democráticos e fortalecer os mecanismos de cooperação e evolução dos povos.

 

Até porque a Venezuela já tem um comprador de petróleo principal. Consegue chutar quem é? A China, depois que os EUA abandonaram esse posto em 2018 em razão das sanções impostas ao país. E aqui é inevitável mais um “pois é”, dado que o EUA eram o maior importador de petróleo bolivariano, mesmo que as acusações de graves violações de direitos humanos contra a Venezuela venham de longa data.

 

Parêntesis 6: vocês crianças não se lembram, mas o Chávez fazia discursos televisionados bizarramente longos (tipo, 6 horas!) para acusar os EUA, combater o imperialismo ianque e toda essa maluquice e, ao mesmo tempo, negociava bilhões de dólares em petróleo exatamente com os EUA. Já deu para pegar o tom né...

 

Voltando: E o motivo é simples: desde de 2014, quando o preço do barril de petróleo despencou e a OPEP simplesmente deixou o circo pegar fogo, a Venezuela (que faz parte da OPEP, tem a maior reserva de petróleo do planeta, mas não apita absolutamente nada...) quebrou com o seu faturamento reduzido à metade. Isso também aconteceu com a Rússia, não curiosamente, no mesmo momento e pelos mesmos motivos.

 

Parêntesis 7: respira aí porque para entender esse fio não dá para ter memória curta. E aproveitando o parêntesis, pode confessar que você achava que a maior reserva de petróleo estava na Arábia Saudita... 

 

Voltando: Com o petróleo em um precinho camarada, dá para descartar a Venezuela e então, em nome da democracia, as relações foram cortadas em 2018. E agora? Bom... agora a China quer dominar o mundo (e provavelmente vai conseguir, assim como os EUA fizeram no sec. XX) e o petróleo está caro por causa da guerra e da mega oportunidade que a galera da OPEP percebeu.

 

Se você é antenado no noticiário, viu que recentemente eles simplesmente cortaram parte relevante da produção de petróleo. A aí o incauto se pergunta: mas por que??? Ora... sem o petróleo da Rússia e com a Venezuela sancionada, mais de 60% do petróleo disponível do planeta está nas mãos deles. Agora é só criar as condições perfeitas para os preços explodirem e sair mais um Ferrari banhado a ouro para cada sheik trabalhando menos.

 

Realmente é agradável a ideia de que o capitalismo puro é o bálsamo da colaboração entre os povos...

 

E não é que, coincidentemente, agora, em 2023, os EUA começaram a revisar a sua política de sanções à Venezuela e já permitiram o reinício de alguns carregamentos de petróleo bolivariano para o Tio Sam! Novamente, aqui não há qualquer relação com os eventos externos, alta do petróleo e necessidade de enfraquecimento regional da China, mas uma tentativa de busca da integração dos países americanos, a influência nas eleições democráticas que vão ocorrer na Venezuela no final do ano, etc...

 

Ufa... acho que já deu. E como eu acho que já falei mais do que o suficiente, aí dá para entrar de volta ao Brasil. Você, meu querido leitor, que teve paciência de chegar até aqui, acha mesmo que o Brasil recebeu o mandatário venezuelano e, depois, os dos demais países latinos, por capricho, gosto, afinidade ideológica ou para implantar o foro de São Paulo talvez... Passamos desta idade né!

 

Está todo mundo pressionado, o mundo está em frangalhos com essa guerra que tomou maiores proporções do que se poderia imaginar, a China investe pesadíssimo para domesticar o mundo para si, os EUA estão entrando em rota de declínio e, por isso, agem vigorosamente para evitar sua redução. Em uma economia baseada na lógica do Acordo de Bretton Woods, literalmente a cumbuca de todo mundo está na reta e não dá para ficar de mimimi selecionando com quem conversar e quem não conversar.

 

O terreno é altamente minado, qualquer coisa pode fazer tudo dar muito errado e aí vale a lógica do “meu pirão primeiro”. Cada um entra no seu quadrado e tenta sair menos machucado se a casa cair. Obviamente, nesse cenário, não tem “gente boa” ou “gente má”, mas “gente útil” e “interesses convergentes”.

 

Se fechar acordo e for bom para a balança, vai ser com democrata, com ditador, com gente de bem ou gente do mal. O Nicolás Maduro é o menor dos nossos problemas e estamos dando ênfase demais para o que não é exatamente o que deveria ser o centro das atenções.

 

Parêntesis 8: exatamente neste contexto, a fala do Lula de que o Maduro é um cara legal é de uma estupidez sem fim. Como chefe de Estado resolvendo os problemas do seu quintal, devia ele ter ficado caladinho e feito cara de paisagem, como todo mundo fez quando era conveniente. Os maiores teóricos das relações diplomáticas são os Pinguins de Madagascar ao enunciar a postura correta a se fazer: “Kowalski! Sorria e acene...”.

 

Voltando: Nesse momento, é a hora de dar outro ataque de risos quando vejo a galera da direita pseudo conservadora comunicar aos EUA que o Maduro está aqui, pedindo que façam alguma coisa! Sério...? O máximo que os EUA vão fazer com o Maduro são negócios! Muito lucrativos e estratégicos por sinal. Detalhe pequeno: a gente não tem nada com isso e não lucra um real se o martelo bater.

 

Ao invés de ficar dando chilique, talvez fosse melhor se preocupar com o fato de que o Tratado de Itaipu vence agora em agosto de 2023! Sim... essa miséria foi assinada há 50 anos e tinha que vencer agora, afetando diretamente a viabilidade econômica da nossa fonte de energia mais estratégica. E aposto que você quase não viu notícias sobre isso né? Pois é de novo... para variar estamos preocupados demais com o que é irrelevante. 

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