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Estado de Minas DIREITO SIMPLES ASSIM

O Direito e o efeito Dunning-Kruger

O amplo acesso às discussões jurídicas nos apresenta algumas questões para discussão


21/06/2023 06:00 - atualizado 21/06/2023 14:22
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representação gráfica tendo por eixo a confiança e por vetor a competência, com um gráfico em parábola demonstrando que quanto menor a competência maior é a confiança.
O efeito Dunning-Kruger mostra que a ignorância é sempre superior à inteligência (foto: Wikimedia Commons)
Um dos efeitos da potencialização das comunicações pelos meios digitais é o aumento exponencial do tráfego de informações de diferentes fontes, principalmente com a descentralização das fontes de produção de conhecimento. Trocando em miúdos, uma informação produzida por um celular no quarto de um adolescente pode ter, potencialmente, tanto ou mais alcance do que uma matéria produzida pelo mais gabaritado repórter do Estado de Minas, que se valeu de toda a estrutura do periódico e da técnica da profissão.

Isso gerou um efeito colateral um tanto quanto curioso, mas bastante perceptível em diferentes níveis de interação social, qual seja: aparentemente todo mundo quer dar opinião em tudo. O “assunto da vez” acaba por levantar uma série de “debates” que, na maioria das vezes, ignora completamente os conhecimentos precedentes necessários para se omitir uma opinião a respeito de determinada matéria.

Cá do meu quadrado, normalmente, lido com informações que são muito técnicas, mas muito claras para quem compartilha deste subcódigo da língua. É uma operação simples de entender como funciona: a) se eu falar “caduco” para a minha mãe ela vai entender “esquecido”; b) se eu falar “caduco” para um advogado em um contexto jurídico, ele vai entender “extinto por decadência”. 

O conhecimento, principalmente o conhecimento técnico especializado, é produzido a partir de um recorte de informações muito próprias e que se fundamenta em um amontoado de conhecimentos anteriores para ser formado. A aquisição de um conhecimento técnico específico ensina a pensar conforme aquele modelo de conhecimento, o que implica em uma alteração da própria formação do pensamento e da percepção de mundo.

Não existe conhecimento melhor ou pior, mas cada um possui a sua peculiaridade. No caso do conhecimento dito científico, esta análise ganha outra proporção, visto que a produção do conhecimento técnico-científico obedece a um critério que lhe garante validade. Essa complicação toda, normalmente, se aprende em uma negligenciada disciplina da faculdade denominada “Metodologia da Pesquisa Científica” ou algum nome semelhante a esse.
 

Parêntesis 1: pode falar que você achava mesmo que essa matéria era para ensinar a fazer TCC. Sinto informar, mas uma coisa quase (eu disse quase!) não tem muito a ver com a outra.

Essa disciplina nada mais faz do que tentar enfiar na cabeça de calouros que a ideia de “verdade” e “validade” em um ambiente de produção de conhecimento depende do respeito a determinadas técnicas e padrões de procedimento necessários. Não se trata de frescura ou de ter que ficar decorando o tamanho da margem de uma folha ou de uma letra, mas de entender que para se afirmar alguma coisa com qualidade técnica é preciso cumprir certos requisitos.

Esses requisitos, essencialmente, estão ligados ao processo de obtenção do conhecimento prévio, as premissas utilizadas, as fontes pesquisadas e os argumentos entrecruzados, com a devida fundamentação, para se chegar a uma conclusão. Como eu sempre disse no início de cada semestre na faculdade para os meus alunos, a minha missão institucional é garantir que o aluno saia do curso entendendo não só que o Datena está errado, mas porque o Datena está errado e com habilidade para demonstrar os motivos e fundamentos desta conclusão.
 

No atual momento que vivemos, esta ideia aparentemente simples parece demandar cada vez mais discussão. É preciso não saber das coisas. Só se busca conhecimento quando este conhecimento não lhe é acessível naquele momento. Respostas só advêm de perguntas e não de afirmações, de modo que o motor da produção de conhecimento é a ignorância.

O problema é que aparentemente estamos vivendo no mundo dos especialistas em absolutamente tudo, o que me remete ao efeito Dunning-Kruger, que é o resultado de uma série de pesquisas realizadas pelos psicólogos David Dunning e Justin Kruger. Esses dois psicólogos produziram uma série de pesquisas lá pelos idos de 1999 (ou seja, muito antes de ter grupo do whatsapp da família e fake news) e concluíram algo surreal:

a) quanto mais ignorante é uma pessoa sobre determinado assunto, mas confiança ela tem em fazer afirmações categóricas e ter certezas absolutas sobre eles; e quanto mais ignorante, mais autoconfiante.

b) quanto mais sábia é uma pessoa sobre determinado assunto, menos confiança ela tem em fazer afirmações categóricas e ter certezas absolutas sobre eles; e quanto mais sábio, menos segurança sobre o próprio conhecimento a pessoa tem.

Você não leu às avessas! Quem entende nada sobre algo é exatamente quem vai ser mais contundente em fazer afirmações sobre esse “algo” e vai ter a melhor autoimagem sobre a sua capacidade de falar a respeito daquilo. E os autores da pesquisa até desenharam essa lógica para a gente entender melhor.
 

O gráfico de aquisição de conhecimento, normalmente é constituído por uma parábola (que é aquele gráfico com linha em formato de “U”). Ou seja, no começo da aquisição de conhecimento há uma grande confiança no domínio do tema e a pessoa se encontra na primeira “perninha” do “U”. De acordo com os pesquisadores, neste estágio, há apenas conhecimento superficial e, via de consequência, não se tem noção da própria ignorância sobre o tema, visto que o mesmo parece “simples”.

Com o início da aquisição de conhecimento, aí só ladeira abaixo até o fundo do poço (que é a parte da base do “U”). Até este ponto é só desespero e impressão de que é impossível aprender o tema proposto, sendo este, inclusive, um marco relevante de episódios de desistência. Aqui a pessoa vai se dando conta, progressivamente, sobre a complexidade do tema e as inúmeras lacunas e ignorâncias que ela mesmo possui sobre o tema.

Ultrapassado o fundo do poço, aí é ladeira acima, de modo que a pessoa começa efetivamente a ter domínio sobre o tema e capacidade de processar as informações necessárias para conhecer a matéria. Além disso, esse volume de informações organizadas se transforma em conhecimento, de modo que essas informações se tornam ferramentas aptas à percepção da realidade e aplicação do conhecimento nesta realidade, visando a sua transformação (ou seja, a segunda perninha do “U”).

O curioso desse processo é que a maioria das pessoas está na primeira perninha do “U” e, aparentemente, não se dá conta disso! E eu não estou chamando o povo de burro, mas apenas constatando o óbvio: nós somos absolutamente ignorantes da imensa maioria das coisas.

Eu acredito que tenho razoável conhecimento jurídico, já testado e validado em inúmeras oportunidades. Entretanto, eu entendo absolutamente nada sobre engenharia, física, saúde humana e animal, etc. A lista é infinita e vale para todos nós.

Parêntesis 2: você já parou para pensar que nós somos absolutamente analfabetos na maior parte do mundo? A ONU reconhece 193 países e apenas 9 países tem o português como língua oficial e tem mais ou menos uns 7 territórios que também reconhecem a língua portuguesa. Ou seja, na maior parte do mundo, a gente nem se comunica com uma criança. Agora pensa que na língua portuguesa tem a linguagem técnica de todos os tipos de conhecimento existentes, que de regra são desconhecidos para nós. Daí você mede o tamanho da nossa ignorância.

Voltando: O único ponto em comum em todos esses saberes é que eu tenho consciência de que isso tudo existe, já ouvi falar um monte de coisas a respeito, já li um texto ou outro e ouvi especialistas da área. Obviamente isso não me habilita a afirmar que tenho conhecimento sobre a matéria e muito menos a desprezar o conhecimento técnico de quem conhece a matéria, principalmente quando o especialista diz algo que me desagrada.

E, no mundo do direito, essa é a parte que eu queria destacar e que julgo merecer atenção. O direito sempre despertou interesse público porque é, na gênese, algo que se aplica a todo e qualquer cidadão sem exceção. E a difusão insana de informações jurídicas, com a teletransmissão de julgamentos ao vivo, fez com que temas jurídicos (principalmente os penais, mas não com exclusividade) fossem tratados como matéria comum, dispensado o conhecimento prévio da matéria.

Essa postura ganha dimensões preocupantes quando pessoas com grande influência pública assumem esse papel de discutir temas técnico-jurídicos sem qualquer formação anterior para isso, mas transmitindo ares de autoridade. Cito um exemplo: Ricardo Amorin é um economista famoso e respeitado na sua área de conhecimento. Inclusive, já ganhou prêmio de economista mais influente do Brasil.

Eu, interessado que sou na matéria, gosto de ouvir o que ele diz sobre economia. Entretanto, ele, com toda a sua influência, insiste em abordar publicamente temas jurídicos (inclusive de natureza técnico-processual) para desmerecer, por exemplo, decisões judiciais! Veja o paradoxo! Ele construiu uma sólida e prestigiosa carreira por causa do seu profundo conhecimento em uma área específica e se julga apto, sem nunca ter estudado direito processual na vida, a dizer que o Poder Judiciário está errado ao proceder um julgamento da forma “x” ou “y”, desprezando, portanto, quem se dedicou a estudar outra coisa.

Parêntesis 3: É um horror! Há manifestações tão descabidas e com conclusões tão assombrosas que é difícil acreditar que ele não tenha um advogado de confiança ou pelo menos alguém da família para alertar sobre questões básicas. A sensação que me dá é que a cada manifestação dele sobre direito um filhote de panda morre na China.

Voltando: É a expressão do efeito Dunning-Kruger no seu ápice. Isso porque quando se lê a primeira vez a ideia dos autores do estudo psicológico, corremos o risco de pensar que ignorante é a pessoa analfabeta ou uma pessoa alienada, etc. E, definitivamente, não é essa a proposta dos autores, posto que a ignorância é em relação àquilo que se propõe a manifestar.

E daí eu tenho a impressão (ou seja, não é um dado, mas um chute) de que o efeito Dunning-Kruger é ainda mais potente em quem é altamente escolarizado. Tais pessoas, exatamente por saberem muito sobre um tema, aparentemente, são tentadas a julgar que sabem muito sobre todas as outras coisas.

E eu tiro esta conclusão a partir de incontáveis vivências pessoais onde observo que pessoas de baixíssima escolarização e posição social tendem a ser comedidas e cautelosas para fazer afirmações sobre esses “temas da vez”; por sua vez, como é corriqueiro lidar com pessoas de elevada posição social e alta escolarização agirem com extrema facilidade e absoluta segurança para proferir verdadeiras aberrações e verborragias sobre temas que estão muito distantes daquilo que podem dizer que dominam.

Trazendo o estudo sobre o efeito Dunning-Kruger para hoje, é preciso refletir sobre a necessidade de falar e opinar que anda permeando a vida. É preciso resgatar o que o professor de Metodologia nos ensinou, no sentido de que não saber é uma premissa para saber, dado que aquele que já sabe não precisa mais buscar.

Como eu sempre digo aqui, é preciso voltar a tornar complexas as coisas complexas, pois tudo é muito mais difícil do que parece em qualquer circunstância. É um exercício simples, mas que tem o maior valor. Além disso, e acredito ser a principal lição de tudo isso, é preciso desconfiar de quem tem certeza demais, de quem acha que não erra, daqueles que têm soluções simples e “óbvias” para tudo e daquelas manifestações contundentes demais e que não permitem abertura para um “e se”.

De regra, diante de uma pessoa com essa postura, melhor é partir do pressuposto que é cilada.
 

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