(none) || (none)
Publicidade

Estado de Minas DIREITO SIMPLES ASSIM

Bolsonaro, a famosa reunião com embaixadores e o que ninguém está falando

A decisão que está encaminhada no TSE para tornar Bolsonaro inelegível tem uma discussão necessária


28/06/2023 06:00 - atualizado 28/06/2023 11:34
1537

Imagem do logotipo da Organização das Nações Unidas, com o mapa mundi organizado a partir da perspectiva do polo norte ao centro e os demais países no entorno.
O Brasil ainda precisa entender melhor as suas relações internacionais (foto: PixaBay)

 

Nessa terça (27/6), foi concluída a leitura do voto do relator da ação de investigação judicial eleitoral movida contra Bolsonaro, concluindo pela inelegibilidade do ex-presidente até 2030. Faltam ainda os votos dos demais ministros, mas a tendência é pela confirmação do voto do relator e consolidação da hipótese de inelegibilidade do ex-presidente.

 

Isso é o que todo mundo está falando e, por óbvio, não é o que eu quero tratar neste texto. Imagino que se você tem algum interesse sobre a matéria já deve estar saturado de tanto mais do mesmo.

 

E daí que a minha proposta é te mostrar algo que não vi na mídia e que é extremamente importante para entender este caso, goste você do resultado da ação ou não. Afinal, entender os “porquês” de qualquer coisa é fundamental e não tem vinculação com as conclusões que dali serão extraídas.

 

E eis o que eu quero te mostrar neste caso. A resposta de uma pergunta aparentemente inocente, mas fundamental: por que este caso (a reunião com os embaixadores) chamou tanta atenção em meio a tantas manifestações semelhantes do ex-presidente?

 

Tente dar uma resposta sem pensar e sem ler até o final e provavelmente você vai concluir, como o que está expresso no voto do relator, que pode configurar abuso de poder político. Outros podem concluir que o ex-presidente quis difamar o sistema eleitoral perante a comunidade internacional. Talvez alguns imaginem que foi porque a reunião criou um constrangimento diplomático.

 

Entretanto, se essas foram algumas das suas hipóteses, sinto informar mas estão todas erradas. A questão não é bem essa.

 

Eu já tive mais de uma oportunidade de afirmar aqui que o Brasil não tem uma cultura muito sólida em relações internacionais, o que pode ser explicado pelas dimensões continentais do país e praticamente ausência de fronteiras.

 

Parêntesis 1: já parou para pensar nisso? O Brasil é um dos maiores países do mundo e praticamente não tem fronteira! Metade do país é mar e na outra metade 60% é mata fechada! Fronteira mesmo, no sentido de relações internacionais, é a menor parte. Apenas em comparação, tem muito europeu que mora em um país e vai trabalhar no outro e passa menos tempo no trânsito do que você.

 

Voltando: por causa dessa característica, a gente é pouco hábil em lidar com essas questões que envolvem relações entre países, autoridades estrangeiras e interações internacionais em geral. E isso deixou escapar uma filigrana fundamental para entender esse imbróglio todo.

 

E que filigrana é essa: como se dá a relação entre países no plano internacional. O processo de relações internacionais existe há séculos, para os mais variados fins. Entretanto, a ideia de que seria preciso sistematizar a forma como as relações internacionais seriam executadas se consolidou no pós 1945, mais especificamente com a promulgação da Carta da ONU de 1948.

 

Os motivos são bem óbvios, dado que o saldo de cadáveres daquele contexto não permitia conclusão diversa senão a no sentido de que a anarquia internacional precisava de algum regramento e algum limite. Como todos sabemos (e tememos até hoje), o mundo não suportará uma III Guerra.

 

Pois bem, constituída a ONU (e eu não quero me demorar neste ponto), em 1969 foi assinada a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados. Essa convenção organiza a forma como os países vão se relacionar uns com os outros, os elementos básicos e necessários para a validade dos tratados e alguns mecanismos para dar possibilidade de cumprimento dos mesmos, até porque precisamos lembrar que não há um governo global com jurisdição acima dos Estados Nacionais (apesar de alguns conspiradores insistirem nisso).

 

Parêntesis 2: é surreal, mas a Convenção de Viena, apesar de assinada em 1969, só entrou em vigor em 1980, quando alcançou a marca mínima de 35 ratificações para ter validade internacional. Pois é, em relações internacionais tudo é bem mais lento.

 

Voltando: e por que a Convenção de Viena é importante para este caso? Porque apesar de os Estados entenderem ser necessária uma regulação das relações internacionais, há uma marca neste ambiente que é histórica e permanece muito forte até hoje: ninguém quer abrir mão do poder sobre o próprio quintal.

 

Se há algo que os países têm como extremamente rígido é a impossibilidade de ingerência de qualquer organismo internacional em seus “assuntos internos”, que é uma forma polida de resguardar a tão afamada soberania. Ou seja, a complexidade das relações internacionais decorre exatamente do fato de que nenhum país se dispõe espontaneamente a ceder nem mesmo parte da sua soberania para o palco internacional.

 

O resultado: no plano internacional é comum termos situações em que “pode e não pode”, “deve, mas não é obrigado”, “compete, mas não é obrigado a acatar” e assim por diante. Tudo isso nada mais é do que cada Estado Nacional se apresentando ao mundo e, ao mesmo tempo, dizendo: do meu quintal cuido eu.

 

É por isso que no plano internacional ninguém está muito preocupado com ditaduras internas, violações de direitos humanos, guerras, etc. Expliquei isso no texto sobre as relações Brasil e Venezuela

 

A Convenção de Viena trata disso já no preâmbulo do texto, ao tratar da Carta das Nações Unidas, que tem como um dos seus princípios a “autodeterminação dos povos”. Além disso, o próprio preâmbulo da Convenção explicita a noção de “não-intervenção nos assuntos internos dos Estados”. 

 

Essas duas afirmações levam ao mesmo fim, que é a noção de separação do plano internacional do plano interno. Tanto é que sempre há um tom alarmista e muito malvisto quando se afirma que um país interferiu em assuntos internos de outros país, dado que exprime essa noção de uma “violação”.

 

E como amarrar este ponto com a história da reunião? Agora ficou fácil. Quem acompanha minimamente as relações entre Estados Nacionais sabe que, de regra, tudo o que é assunto interno é escondido na maior medida possível, a menos que possa influenciar uma negociação internacional de interesse do país. Se não for assim, assunto interno não é tema de debate em palco internacional.

 

Daí você deve imaginar que um embaixador passa a vida lidando exatamente com essa postura em todos os lugares por onde ele passa, de modo que a expectativa é exatamente que as informações internas são ocultadas e as informações realmente relevantes não são divulgadas. É assim que funciona, todo mundo faz assim e não adianta ficar com elucubrações sobre como seria um mundo de Alice em que isso não aconteceria.

 

Então, neste ambiente, uma revoada de embaixadores é chamada para ser recebida pelo então Presidente da República para tratar de um assunto interno do país! 

 

Parêntesis 3: outra questão muito importante neste caso é que, em relações internacionais, as tratativas são feitas sempre com os homólogos. Isso significa que Chefe de Estado trata com Chefe de Estado, Chanceler trata com Chanceler, Ministro trata com Ministro, Embaixador trata com Embaixador. Ou seja, um embaixador ser chamado para tratar com o Presidente já causou muita estranheza, eu garanto.

 

Voltando: o silêncio de cemitério ao final da reunião não teve outro significado senão a mais completa incompreensão dos embaixadores sobre os motivos daquela reunião, visto que o seu conteúdo foi exclusivamente assuntos de interesse interno do país. Ou seja, estava-se expondo para a comunidade internacional, de forma intencional e deliberada, algo que, em tese, deveria passar muito longe das pautas entre aqueles atores.

 

Obviamente, as pessoas que estão neste palco podem ser qualquer coisa menos ingênuas e, rapidamente, foram suscitadas as razões pelas quais aquela reunião foi motivada. E das duas, uma: ou o então Presidente estava realmente saindo completamente da fórmula de atuação adotada em toda a comunidade internacional há séculos ou o então Presidente queria criar uma situação que desaguaria em um incidente internacional que demandaria a manifestação dos demais países dentro de determinado período.

 

Acredite em mim: no dia seguinte àquela reunião já havia vários serviços de inteligência, embaixadas e observadores internacionais com os olhos no Brasil. Interessados na nossa democracia? Não! Lembrem que assuntos internos são irrelevantes neste palco.

 

Estavam interessados no prejuízo que poderiam ter com aquilo que poderia vir e até então ninguém sabia bem o que era. Ou seja, goste você ou não goste do ex-presidente, é preciso entender que ele errou e violou uma regra básica demais das relações internacionais e isso, claramente, acendeu todas as luzes de alerta possíveis.

 

Errou claramente e chamou a atenção. E veja o ponto que eu quero defender aqui: não foi pelo conteúdo, dado que não havia muita novidade. Foi pela forma adotada, constituída por uma violação muito grave de um procedimento consolidado secularmente nas relações entre os Estados Nacionais.

 

E não se pode subestimar os impactos da quebra de hábitos e costumes internacionais, pois quase tudo nessa área tem 3 dígitos de anos de prática. O problema é que demanda um olhar menos açodado para ver.

 

 

*Para comentar, faça seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)