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Estado de Minas DIREITO SIMPLES ASSIM

Estupro, legítima defesa da honra e 2023: o que fizemos de errado

O noticiário do início da semana dá conta de que estamos errando muito


02/08/2023 18:56 - atualizado 02/08/2023 18:57
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multidão em protesto, onde uma mulher segura um cartaz escrito: 'If you're not angry, you're not paying attention'.
Quem não está indignado está errado! (foto: Fred Murphy)
Fomos acordados nesta última segunda com a triste notícia de um estupro absurdo ocorrido em Belo Horizonte, no qual uma mulher foi deixada desacordada na rua e carregada por outra pessoa (o criminoso) para um campo de futebol, onde foi violentada. Também na segunda-feira, o STF julgou a inconstitucionalidade do argumento de legítima defesa da honra como excludente de ilicitude de crimes praticados contra mulheres, especialmente no âmbito doméstico e familiar.

 

Pois bem, são dois fatos distintos, mas que conversam entre si em tantos pontos que é preciso escolher um para falar. E o que mais em intrigou nesse manancial de loucura é o fato de que o Supremo Tribunal Federal está julgando, em 2023, se o argumento de legítima defesa da honra tem validade!

O absurdo do argumento é tão grotesco que absurdo não é o argumento em si, mas o fato de ele estar sendo pauta de julgamento agora!

 

Eu entrei na faculdade de Direito há quase 20 anos e, desde os primeiros períodos, ouvi falar desse argumento como algo do passo obscuro de um processo penal baseado na revitimização e na absoluta desconsideração de qualquer direito das mulheres. Esse julgamento do STF me fez sair da minha “bolha” e perceber que o Brasil é muito grande e meu microcosmo (reduzido a três ou quatro), definitivamente não reflete a realidade da vida e dos tribunais brasileiros.

 

Veja que, se o STF está julgando esse negócio, é porque a matéria passou por um juiz de primeira instância ou pelo júri (no júri, o juiz de direito só aplica a pena), por um tribunal e eventualmente pelo Superior Tribunal de Justiça antes de chegar ao STF. Daí ou o juiz de primeira instância acolheu ou negou, e alguém recorreu. Percebe? Em algum lugar algo está muito errado.

 

E o primeiro lugar que isso está muito errado é na advocacia! É impressionante como é fácil criticar o Judiciário, mas pouco se diz dos membros da advocacia que lançam mão de um argumento absurdo desse. No século 21, um advogado que usa um argumento desse para uma tese de defesa deveria ter a sua aptidão profissional avaliada pela OAB, porque é uma vergonha para a profissão.

 

A advocacia criminal deve ser aplaudida e merecer o devido respeito da sociedade porque é composta por valorosos profissionais que atuam na defesa de um dos bens mais preciosos que o cidadão pode ter, que é a liberdade. Entretanto, como tudo nesta vida, há limites. Não há direito absoluto a nada e muito menos seria nesse caso.

 

Há zonas ditas “cinzentas”, onde os posicionamentos ideológico, filosófico ou político são capazes de alterar o entendimento jurídico, e isso é perfeitamente compreensível. Já ultrapassamos a fase de fingir que somos “isentões” e temos maturidade profissional o suficiente para compreender que lugar de fala é algo inerente ao ser humano.

 

Entretanto, essa percepção não pode servir de argumento para permitir atrocidades em nome do exercício do direito de defesa. Há limites e aqui entendo que há limites éticos que não podem ser tolerados.

 

E o motivo se dá exatamente pelo fato ocorrido nesta segunda em BH, onde uma mulher (mais uma entre tantas que a gente nem escuta falar) foi tratada como coisa por alguém que lhe retirou o aspecto mais elementar do ser humano: a dignidade.

 

Veja que, para o Direito Penal, a denominada “res derelictae” é a coisa abandonada e, sendo abandonada, a sua tomada por terceiros não é passível de acusação criminal. Sacou? Não dê ênfase ao termo “abandonada”, mas ao termo “coisa”. 

 

A moça abandonada foi tratada como “coisa abandonada” e, por isso, disponível para ser subtraída por aquele que passasse. A legítima defesa da honra faz a mesma coisa, posto que trata a integridade e a dignidade da mulher como um atributo de outra pessoa e, por isso, merecedor de intervenção e destinação de acordo com o seu “dono”.

 

Ou seja, esse tipo de discurso, de forma nem tão sorrateira assim, legitima essa percepção linguística, cultural e comportamental de objetificação, que precisa muito ser combatida. E se as instituições não fazem o seu papel, muito menos há de se esperar que o resto da população assim o faça.

 

Falhou feio a advocacia brasileira e suas instituições ao permitir, sem se manifestar, que esse tipo de discurso ainda permeie as manifestações expressas do exercício do direito de defesa. E essa falha contribuiu (obviamente que não de forma direta e muito menos como causa única) para mantermos essa bruta realidade que se faz presente todos os dias e em todas as regiões do país.

 

As instituições são importantes porque o cidadão, de regra, vive de forma isolada em um círculo social muito restrito. Como acabei de dizer, eu que estudo, vivo e convivo com gente do direito há quase 20 anos, não fazia ideia que esse tipo de argumento ainda era lançado nos tribunais do país. 

 

E ainda há muitas outras bolhas para serem furadas sobre esse tema, que é tão politizado e, ao mesmo tempo, tratado com tão pouca seriedade. Não se trata de agitar bandeiras para lado nenhum, dado que, independente do espectro político ou filosófico, este tema deveria ser convergente, pois não há argumento capaz de validar uma situação como esta. 

 

O caso aqui é de resguardar o mínimo que um ser humano pode ter, que é o respeito pelo corpo do outro. É tão nonsense tratar disso, pois há nações (e não quero fazer disso uma comparação, mas uma reflexão) em que as pessoas não precisam se preocupar com bens (coisas) deixadas na rua. Nestes locais, de regra (e é preciso sempre frisar que não existe paraíso na terra), essas coisas não serão tomadas por ninguém, ainda que diante da ausência de vigília.

 

No Brasil, a nossa “dor” é muito pior, pois nem se trata de propriedade, mas de pessoas. Nem as pessoas podem ficar na rua. Se essa pessoa for do sexo feminino, ela não pode ficar na rua, andar na rua ou fazer qualquer coisa na rua sem a insegurança de que, a qualquer momento, a sua liberdade, dignidade e humanidade possam ser violadas.

 

É só mais uma mostra de que estamos falhando miseravelmente como sociedade e é urgente pensar onde estamos falhando e o que podemos fazer para tentar melhorar como povo. O problema disso tudo é pensar que, neste momento, tem gente falando que a culpa é da moça que “caçou com as mãos” porque bebeu demais...

 

 

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